domingo, 10 de novembro de 2024

O bode chupando manga


 

O BODE CHUPANDO MANGA

 

 

Coisa mais linda é admirar,

numa tarde com um sol

queimando até os miolos,

um bode chupando manga.

 

Na avenida, na sarjeta,

vai sério, compenetrado,

o rabo espantando moscas,

o bode chupando manga.

 

A origem do universo

e o fim de todas as coisas,

nada importa tanto quanto

o bode chupando manga.

 

A metafísica, o nada,

a náusea, a dor de existir

se evaporam no ar diante

do bode chupando manga.

 

As guerras, fome, doença,

a destruição do planeta,

tudo se esquece se eu vejo

um bode chupando manga.

 

 

José Brandão

 

 

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

O suicídio

 


O suicídio

 

 

        O poeta e filósofo Antonio Cícero estava com Alzheimer e, antes que se agravasse o seu caso e não pudesse tomar nenhuma decisão, decidiu viajar à Suíça onde o suicídio assistido é permitido. Todos (ou todos que se pronunciaram) elogiaram o seu ato final. Vou deixar aqui umas reflexões sobre esse ato, que afinal, se não o justificam, convidam o leitor a refletir sobre o assunto. Como Antonio Cícero se dizia ateu e por isso era dono do seu destino, não discuto o caso do ponto de vista religioso.

O único problema filosófico verdadeiramente sério é o suicídio, diz Albert Camus. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. Pode ser que muitos encontraram a resposta negativa e tiveram a coragem de acabar com seus dias e noites sem sentido. Outros se acovardaram, o que é mais comum e mesmo louvável, humano. Outros muitos não encontram resposta nenhuma e se entregam ao desespero ou depressão ou angústia ou ao que quer que seja que não podem suportar e sucumbem, porque o homem é fraco. Suicidam-se por não terem coragem para se suicidar.

        Por que um homem se mata? Este deve ser um problema mais humano do que filosófico. Não basta julgar, responder, decidir. Nunca se saberá se a decisão foi acertada. Julgar é um processo intelectual, responder implica em ação pura e somente após concluída essa ação se pode dizer que foi tomada uma decisão. E a fraqueza humana é tal que a maioria de nossas ações não se explicam. Muitas vezes ou sempre agimos não por uma resposta filosófica, mas porque é de nossa natureza agir de tal ou qual forma.

        "Se te queres matar, por que não te queres matar?" - pergunta Fernando Pessoa e responde: "Se ousasse matar-me, também me mataria." E parece que ousar é tudo, mas o certo é que muita gente se mata por não ousar viver. Ou, em contrapartida, há o caso de E. M. Cioran, que justificou o suicídio a vida inteira. A vida não vale a pena e a dor de ser vivida. Parece que só porque foi o filósofo da amargura, da decomposição, viveu mais de oitenta anos.

        Tudo é muito bonito e interessante intelectualmente, mas a vida e a morte não são literatura. As palavras trabalhadas com arte são literatura. A arte responde o que a filosofia não pode responder, mas sempre sobram perguntas sem resposta. São interrogações no vazio e nem o vazio de depois da vida é uma resposta. A religião pode preencher esse vazio como a arte e a filosofia podem, mas humanamente resta o caos, que nada preenche. Se há transcendência todos os problemas estão resolvidos, se concluímos que há Deus morrem todos os motivos para se questionar a vida, mas muitas vezes ou sempre agimos segundo a nossa natureza, ou contra a nossa natureza.

 

José Carlos Brandão – membro da Academia Bauruense de Letras 

 

 

 

 

sábado, 4 de maio de 2024

Nascimento de um romancista


Nascimento de um romancista

 

Quando lancei meu segundo livro, “Exílio” (1983), no Instituto Dona Escolástica Rosa, em Santos, Benilson Toniolo era meu aluno. Tinha 15 anos de idade e começou a sonhar com a literatura. Depois Benilson estudou História, com pós-graduação em Ciência Política e especialização em Realidade Latino-Americana, foi secretário de Cultura em Campos do Jordão, cidade que prima justamente pela valorização da Cultura, é presidente da Academia de Letras de Campos do Jordão e membro correspondente da Academia Bauruense de Letras. Publicou vários livros de poesia, contos, crônicas, memória, arte e biografia. É um poeta com voz própria, o que define um poeta. “Barra-dos-Meninos” é seu primeiro romance.

“Ainda está longe, a morada” é a abertura do romance. Apresenta-se o primeiro personagem sofredor desse lugarejo do Sergipe, lá no fim do mundo. É Cascalho, que depois se torna Raimundo, sofrendo como se carregasse o mundo nos ombros. Está apresentado o romance e o leitor não vai mais abandonar o narrador até que o livro se fecha. Os problemas daquela vida esquecida de Deus e dos homens continuarão. O leitor sente um peso no peito – o que será daqueles meninos? Porque, como bem diz o nome, Barra-dos-Meninos, é uma vila de meninos. Desde o mais velho, Liduíno, que lê muito e tem consciência dos problemas do lugar, até o último dos “meninos”, todos parecem de fato meninos – estamos na infância da humanidade, quando os meninos nunca irão crescer, assim como seu sofrimento nunca vai acabar.

O cego Irineu tem a poesia para viver, para ajudar o povo pobre da vila a viver. Declama os seus versos na feira e ganha uns cobres minguados – afinal, ninguém tem dinheiro – em pagamento. O pajé Moerekoara e sua tribo vivem à margem da rodovia federal, à margem da vida. Convivem pacificamente com os habitantes da vila. O pastor Divino, novo no lugar, implica com os índios, mas acaba cedendo, afinal eles são os legítimos donos daquela terra. As mulheres sobrevivem, com mais dificuldade. Violeta, que veio de longe para pesquisar caranguejos, é objeto de desejo dos homens, esses homens que parecem crianças. Estão aprendendo a sonhar, eles que nem sonhar sabiam.

Benilson Toniolo vive em Campos do Jordão, no alto da montanha, respirando entre os pinheiros e a arte, mas nasceu em Santos, de pai nordestino, e foi criado perto do mangue de Vicente de Carvalho, no Guarujá. Foi criado ouvindo histórias como essas que conta, convivendo com personagens semelhantes aos pobres infelizes de seu romance. Foi como se essas histórias tivessem ficado incubadas à espera de serem despertadas numa visita do autor a Aracaju. Era preciso contar essas histórias, sem enfeites, para mostrar “A vida, apenas”, como diz no título de um capítulo. “A vida apenas, sem mistificação”, disse Drummond.

 

José Carlos Brandão