O tio Carlos
O Álvaro me convidou para uma cerveja. O sol estava esplêndido, o mar estava esplêndido, era um bom convite. Estava no bairro da Aparecida, em Santos, na feira livre atrás do Instituto dona Escolástica Rosa, onde eu lecionava. Estava comendo um pastel e fui tomar uma cerveja para acompanhar, numa padaria, ao lado do Álvaro, que se ajeitava na banqueta junto ao balcão e não parava de proclamar:
– O tio Carlos é comunista!
Com muito orgulho, diga-se de passagem. O Álvaro era filho de Mário Morais, líder sindical dos estivadores das docas de Santos (as greves eram declaradamente comunistas), irmão de Dolores, esposa de Carlos Drummond de Andrade. Logo, o tio Carlos não era ninguém menos do que o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Que tinha um selo na testa que ninguém queria ver e o Álvaro não se conformava:
– O tio Carlos é comunista!
Era lá por 1980, época de um purismo formalista/estruturalista na literatura, que excluía a biografia do autor para se ler a sua obra em si. Talvez fosse isso. Drummond pertenceu ao Partido Comunista Brasileiro, por um ano apenas – o partidão se metia na obra dos autores, tinham que escrever segundo suas diretrizes –, essa camisa de força mataria qualquer poesia. Durante a 2ª Guerra Mundial, e nos anos que a antecederam, os artistas ou intelectuais não viram outra solução senão o Comunismo para combater o nazifascismo que dominava o mundo. É quando Drummond faz os seus poemas mais sociais – à vezes com referências diretas a ações comunistas, como a “Carta a Stalingrado” ou o “Telegrama de Moscou”. Foi a Rússia que deteve os tanques de Hitler. Não é à toa que eu ainda ouça o Álvaro proclamando:
– O tio Carlos é comunista!
Eu o encontrava de vez em quando nas imediações do Escolástica Rosa. Contei-lhe que tinha publicado o meu primeiro livro, “O emparedado”, há uns anos (1975), e enviado um exemplar a Drummond, que me agradecera com um cartão muito atencioso. O Álvaro soube da minha admiração por Drummond, soube que eu era o endereço certo para o seu protesto. Como podiam dizer que o seu tio não era comunista? Balançava a taça de cerveja, mal se equilibrando, mal parando de pé – tinha bebido um pouco a mais – e protestava:
– O tio Carlos é comunista!
Era a primeira vez que eu conversava com um parente de um grande, de um enorme poeta. A primeira vez que eu via alguém falar com familiaridade sobre Drummond, até chamando-o de “tio Carlos”. Não aprendi com ele mais nada sobre Carlos Drummond de Andrade, nada sobre a sua obra que causa impacto em todos os que o leem, que é o instrumento de navegação imprescindível para quem quiser escrever poesia. Aprendi, e basta, esta verdade insofismável:
– O tio Carlos é comunista!
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