segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Sol no umbigo


                                                                                                                   Picasso, Jacqueline



Sol no umbigo


O gargalo da garça voa.
A mariposa ama a chama mais do que a vida.
O inferno não são os outros, mas o espelho.
Quem escapa dos lobos é devorado pelas ovelhas.
A humanidade não vale mais do que as minhas unhas,
que sobreviverão à minha humanidade.
Uma mulher deitada no chão do meu quarto
e o seu perfume de rosa e suor.
A vantagem do navio dentro da garrafa
é não partir nunca.
A vantagem do cego é não ver o fim do mundo.
O mundo acabará no fim do túnel.
O mundo não acabará com um suspiro,
mas com um peido.
As sombras das coisas não são as coisas,
mas assombram.
A aranha devora a violeta e o poeta.
O sol ilumina o abismo.
Sol no umbigo, sinal de perigo.
As pirâmides passam, como os pássaros.
A pedra não tem fim.



               



segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O trabalho dos dias




O trabalho dos dias


Não creio em milagres. Mas a vida é um milagre.
Os cavalos relincham na madrugada. A vida é um milagre.
A chuva lava as árvores e os animais. A vida é um milagre.
Os corações batem como relógios desgovernados. O coração é um milagre.
Os telhados são vermelhos como o sangue e pulsam.
As parteiras são cândidas como a minha mãe. Aplaudam a risada das parteiras.
O céu se abaixa para me proteger, os montes se abaixam maternalmente.
Tenho um poder tão grandioso em mim, pulsa em mim um poder antigo.
Uma escuridão imensa cai sobre as coisas.
A montanha maternal vela o meu corpo pequeno.
O trabalho dos dias é suave sob os barrancos e as águas calmas.






domingo, 1 de dezembro de 2019

O TEMPO ME SUSTENTA





O tempo me sustenta


O tempo me sustenta. O tempo é o que o tempo quer ser.
Tenho o tempo nas mãos como uma coisa,
como um pedaço de argila que tento moldar.
É como se o tempo fosse concreto, exato.
Espero como quem sabe. Sofro e espero.
Não há muito o que fazer. A casa está arrumada
como se estivesse à espera da morte.
Minhas mãos tecem o tempo como uma rede
que se desfaz nó a nó, logo após ser tecida.
É preciso desfazer os nós da vida para depois viver.
Leio o meu poema antes que se desfaça como pó.
A cidade torna-se papel e se desfaz num átimo.
Procuro a minha sombra, como se a minha sombra me justificasse.
A cidade espera comigo, desfaz-se comigo.
O capim cresce entre as pedras, entre os vãos do asfalto.