domingo, 29 de setembro de 2019

Um defeito de cor



                                           Um defeito de cor


       Millôr Fernandes diz que “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, é um dos dez romances mais importantes da literatura brasileira. Em 2006 ganhou o prêmio Casa de Las Américas, em Cuba. É a referência cultural e histórica da identidade brasileira. Você pega aquele livrão, quase mil páginas e dá um passo atrás. Quando começa a ler, vê que a narrativa é envolvente e tem muito a lhe oferecer. É a história de Kehinde, a sua odisseia sem fim. Viu a mãe e o irmão serem torturados e mortos, foi capturada com a avó e a irmã gêmea, que morrem no navio. Chegando ao Brasil, nada até a terra para não ser batizada com um nome de branco, na luta para manter a sua identidade. “A viagem de Kehinde é a minha viagem para dentro de mim mesma, onde encontrei eco das histórias que pesquisei”, diz a autora, sobre o seu processo de busca da sua própria identidade negra.

      Kehinde conta a sua vida como escrava na Ilha de Itaparica, na Bahia, os seus sofrimentos e as viagens pelo Brasil em busca de um de seus filhos, sempre fiel a seus deuses africanos, como a reafirmar as suas raízes. A obra reconstrói o modo de vida dos africanos, portugueses e brasileiros no tempo da escravidão, como os escravos se organizaram para sobreviver e lutar pela liberdade no país. Kehinde ou Luísa Mahin – a narradora muda de nome segundo a necessidade –, já centenária e cega, dita as suas memórias. Foi uma lutadora, para manter a sua identidade, para preservar a sua religião, matriz dessa identidade. Ana Maria Gonçalves diz: “Para quem é mestiça, como eu, e em uma sociedade na qual o racismo é estrutural, a identidade é uma identidade negociável. A literatura pode ser uma ferramenta importante, porque é capaz de provocar a empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de vivenciar outras histórias e outras experiências.”

       A história de Kehinde foi inspirada na vida de várias mulheres. Pode-se notar que Kehinde, ao ser retirada de sua terra para ser escravizada, passa a se estranhar, a viver em busca de seu eu, a ver na travessia o verdadeiro motivo do viver. É o fenômeno do eterno viajante, que vem desde Homero até Guimarães Rosa. É o dilema do estrangeiro: não pertencer a nenhum lugar. Quando volta à África, descobre que lá também é estrangeira: lá não é vista como africana, mas como uma brasileira. Ao perceber que poderia não encontrar o filho, a narradora relata o que viveu para que um dia ele possa ter conhecimento da história da mãe e seja um herdeiro de sua identidade. “Um defeito de cor” é um livro obrigatório: é a história das nossas raízes, da nossa identidade de brasileiros. Nós todos somos herdeiros de Kehinde.

       (Ah, "Um defeito de cor" porque, para ocupar um cargo na administração, no Exército ou mesmo na Igreja, os negros tinham que escrever ao rei pedindo autorização para renunciar ao seu "defeito de cor". A nossa história não é bonita.)





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