quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Poemeto solto para Wilson Nanini

                                                                                                                                           Munch 1928 



Poemeto solto para Wilson Nanini


Tudo é uma questão de despaisagismo
travessia à beira da cegueira

O espelho é sempre nu
como uma ave de rapina

Nua como um trem descarrilado
no abismo

O teu vestido era um escafandro
sem asas

O sol era tanto
queimou até as minhas guelras

Do lado de lá da palavra
só a morte

O poeta voa com a febre
que o queima





sexta-feira, 16 de novembro de 2018

POÉTICA





POÉTICA


O escultor quebra pedras, desgasta
as pedras, desgasta, gasta e gasta
até que reste apenas o silêncio.

Quando o poeta ouve o silêncio
o poema está pronto.





segunda-feira, 12 de novembro de 2018

França, 1918 (Centenário do fim da 1º Guerra Mundial)



FRANÇA, 1918


Cinco soldados atentos, inquietos, angustiados.
Um na primeira cratera de granada,
dois na segunda,
outros dois na terceira mais ao fundo.
Além, bem mais ao fundo, envoltos numa neblina de fumaça,
talvez estejam outros, todos esperando a morte.
As granadas abriram crateras, abrigos improvisados
para os escolhidos
para a ceifa da morte.
Uma foice comum cortará cabeça após cabeça.
Nesta guerra não há mais heróis,
mas vítimas, como trigo a ser ceifado.

A cratera maior em primeiro plano, cheia de água.
A água suja não reflete o sol,
não convida à sede.
Não há sol no céu: a terra
é escura, negra, da cor da morte.
Os soldados já perderam a sede e a esperança.
Estão vestidos para o frio.
A terra se encolhe encharcada: choveu a chuva da morte.
Nada. Ninguém. Desolação.
Uma forma minúscula esconde-se em um montículo de terra,
um rato nesta terra de ratos.
Os ratos roem o fio tênue da vida.

Os soldados ostentam chapéus esquisitos, de metal,
esses capacetes inventados para morrer.
Não protegem do sol ou da chuva.
Talvez protejam das granadas e dos tiros de fuzil.
São os chapéus do talvez.
A guilhotina da morte cairá, talvez hoje, talvez amanhã,
mas cairá. A morte é a única certeza.
A morte sempre foi a única certeza.

Os fragmentos de metal das granadas voam,
faíscas da morte belas como estrelas.
Os olhos do primeiro soldado são crateras numa face de pedra.
Dos outros, vê-se apenas a face de pedra.
Do segundo, não se vê a face,
talvez de um menino, que o capacete devora.

É triste, mas os homens são de pedra,
de terra, nesta seara, neste túmulo.
De pedra, como estátuas, onde se lê a dor fria da morte.
De terra, porque esses homens já retornam à terra, de que somos feitos. 
Esses homens inauguram a indústria da morte.
Não choram.
São monumentos que desabam.












 


quarta-feira, 7 de novembro de 2018

No aniversário de Cecília Meireles





RETRATO

d’après Cecília Meireles


Eu sempre tive esta mesma cara,
meio séria, meio esquiva, meio ignara,
com os olhos vesgos
e a língua ferina.

Eu sempre tive estas unhas de arpão,
 feias e mortas de medo;
eu sempre tive este coração
de gelo.

Eu nunca mudei a minha dor:
sempre fui o mesmo vulto esconso
fiando na roca e no fuso
de um espelho obtuso.

José Carlos Brandão

Metamorfoses de Ofídio – paráfrases e paródias extemporâneas