quarta-feira, 28 de junho de 2017

AURORA




AURORA


Os galos cantam
o homem escova os dentes fazendo careta para o espelho
não sabe o sentido da vida nem quer saber
sabe que vai morrer e isso é suficiente
os pneus do seu carro estão na lona
os seus olhos às vezes não enxergam quase nada
sempre vê um estranho no espelho
o inferno são os outros e os outros são ele mesmo
a mulher vê a beleza no espelho
descobriu que não existe nenhum propósito na existência
os dias são cada vez mais compridos
a mulher chora como uma ostra
escrever é tão necessário quanto sofrer
a mesa está atulhada de papéis contas a pagar memorandos
a vida é feita de memorandos e outros papéis inúteis
a mulher sabe que não vai morrer enquanto não terminar de escrever
o homem corta os pulsos para sentir a vida pulsar
a mulher corta os pulsos para não envelhecer com o dia
o sangue na bacia é da cor da aurora








sábado, 24 de junho de 2017

So long, L. B. (Lucia Berlin)






SO LONG, L. B.





Então o que é o casamento afinal?

Eu nunca consegui descobrir.

Na verdade, o amor

é mais um mistério para mim.



E agora é a morte que eu não entendo.




(poema desentranhado de Manual da Faxineira, de Lucia Berlin, Companhia das Letras, 2017)









segunda-feira, 19 de junho de 2017

A TARTARUGA




A TARTARUGA


A tartaruga recolheu a cabeça para dentro da sua
casca e não se moveu
o tempo se moveu
o tempo é Aquiles e se moveu para ganhar a corrida
contra a
tartaruga
os homens morrem porque é da sua natureza
a tartaruga permanece
a tartaruga imóvel
é da sua natureza ser longeva como a terra
cresce musgo sobre a sua casca
a tartaruga dentro da sua casca ouve a água que a
inunda






quarta-feira, 14 de junho de 2017

AUTOTOMIA - Wislawa Szymborska





AUTOTOMIA


Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.


Wisława Szymborska