quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Estranho rio, estranha terra






ESTRANHO RIO, ESTRANHA TERRA


O peixe nadava tranquilamente pela rodovia, quando veio um carro e... Mas como? Um peixe no meio da rodovia? Sorte que era uma motorista precavida, e que enxergava bem: viu o saquinho de peixes caído no asfalto, parou, brecou como pôde – bruscamente.  E aí a sorte virou azar: mais quatro carros vinham logo em seguida e não conseguiram brecar a tempo, o que resultou no engavetamento de cinco carros, e os seus ocupantes ficando feridos, ainda bem que levemente. O peixe nadava tranquilamente, eu escrevi. Não deveria, mas foi a imagem que me ocorreu. Soube que havia um peixe na estrada, portanto deveria estar nadando. Não imaginaria que se tratava de um saquinho de peixes; que os ditos peixinhos nadavam dentro do saquinho, em segurança, até serem atropelados – ou queimados pelo sol.
Agora fico imaginando quem foi o imprevidente que derrubou o saquinho bem no meio da estrada. Se sabia que tinha tais atribuições – porque um imprevidente deveria saber que é imprevidente – por que não deixou o saquinho em casa ou na loja? Por que não deixou os peixinhos no aquário, que é o lugar deles? Mas se fosse mais previdente, não tiraria os peixinhos do lugar real deles, do seu habitat natural: o rio, talvez o mar. É isso que dá mexermos com a natureza. Em lugar de deixarmos as coisas seguirem seu curso, as águas a caminho do mar, os peixes dentro das águas e não vivendo uma vida artificial como nós vivemos. Resultado: quase várias pessoas morrem. Porque agimos contra a natureza. Não foram os peixinhos que estavam nadando na estrada. Foram os homens que os levaram lá, para morrer e matar. É o óbvio, mas é preciso lembrar dessa autoacusação. Sempre são os homens que agem contra a natureza. Somos nós os culpados.
Estou comentando um caso menor, acontecido numa estrada da Alemanha, mas que pode acontecer em qualquer lugar do mundo e pode assumir proporções gigantescas. O problema não é apenas o fato de cinco ou seis pessoas ficarem hospitalizadas, por um leve acidente. O problema é a agressão contra a natureza, representada por esse saquinho de peixes jogado na estrada. Os peixinhos não estavam nadando tranquilamente na rodovia, nem estão em tranquilidade soltos nos rios ou nos mares. São as vítimas do progresso, como nós. Mas nós somos vítimas e agentes do progresso. Quando olharmos para trás será tarde. Teremos engavetado todas as ideias saudáveis, todos os projetos que poderiam conduzir-nos para um mundo melhor, justamente em nome de um mundo melhor. Enforcamo-nos para testar a melhor corda para um enforcamento. (Dizem que alhures alguns corruptos se enforcam.) Testamos a melhor forma de acabar com a humanidade, querendo levá-la ao paraíso das delícias terrestres. Em nome do bem-estar, preparamos a destruição da terra em que vivemos.
Freud escreveu sobre o mal-estar da civilização – esqueceu-se de que não era filósofo? Lembrou-se de que era humano, demasiado humano. Não estava procurando chifres em cabeça de cavalo. Estava constatando: estamos tão empenhados em ser felizes, procuramos tanto o bem-estar, que acabamos encontrando só o mal-estar. Ou podemos ser felizes com uma vida artificial? Não estamos embalados em saquinhos de plástico como os peixinhos da rodovia alemã? Ou seremos atropelados ou morreremos sufocados pelo plástico que nos envolve. Mal-estar existencial que há cem anos Freud já não explicava. Estranho rio, o asfalto dos peixinhos. Estranha terra a nossa, a bolha de ozônio e o aquecimento acelerado. Muito estranha, a nossa vida de plástico.





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