sábado, 31 de dezembro de 2016

Passagem do ano - Drummond










PASSAGEM DO ANO
Carlos Drummond de Andrade


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.


O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.


O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


A rosa do povo, 1945





domingo, 11 de dezembro de 2016

O último poeta nacional







O ÚLTIMO POETA NACIONAL






Morreu Ferreira Gullar, o último poeta nacional. A poesia brasileira ficou bem mais pobre. Ninguém da estatura de Drummond ou Bandeira, ninguém da estatura de Ferreira Gullar. Foram-se Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Raul Bopp, João Cabral de Melo Neto, Manuel de Barros. Temos ainda poetas excelentes, mas desconhecidos do público. Ninguém que o leitor infla o peito para dizer o seu nome, como se fosse um nome maior do que o do comum dos mortais.
Escrevi há dez anos um comentário, que quero recordar com os meus leitores: "O Poema Sujo, de Ferreira Gullar está comemorando os seus trinta anos de publicação. Eu ouvi o poeta ler algumas passagens, em agosto deste ano, na 4ª Flip.
O poema permanecia forte, fervendo de calor, de sangue quente correndo-lhe nas veias. O público, de boca aberta. Olhos baixos, reverentes.
O tempo se escoou e o Poema Sujo continua recendendo o limo virginal de sua sujeira: recende poesia pura, conspurcada por aqueles tempos sujos - a ditadura militar, o poeta estava no exílio, despedia-se temendo o futuro, que era a morte. Mas, algum tempo depois, li uma resenha dizendo que o poema envelhecera.
Eu ouvira passagens fortes, na voz forte do poeta - que sabe dizer muito bem os seus poemas. Encontrei novamente essas passagens fortes, pujantes de vida. Um poema deve ter isso: vida.
Não pode ser frio, ser letra morta ao nascer, ou com o tempo, comprovando então que não era tão bom assim. O poema pulsa ainda, com sangue quente.
O resenhista não deixava de ter razão, no entanto. Outras passagens eram fracas. Um poema de umas setenta páginas pode muito bem ter algumas mais fracas. É comum dizer-se da vantagem do romance sobre o conto - que o romance pode ter imperfeições, e continuar sendo um grande romance. As imperfeições não o invalidam.
O conto deve ser como o poema: um lapso, um mínimo deslize estraga-o. Como o poema, eu disse. Mas o Poema Sujo é um texto longo como um romance - suporta as imperfeições que o romance suporta.
Ferreira Gullar tem uma teoria interessante. O poeta serve-se da linguagem da prosa, que, num dado momento, por um estalo mágico, por um encantamento das palavras ao se encontrar, ou ao se desencontrar, torna-se poesia. As palavras criam imagens, encantam-se. Perfeito. Estranha um pouco dizer que se serve da linguagem da prosa, mas é o que acontece com ele, Ferreira Gullar.
Escreve prosa, mas com palavras que se encantam: e voam pássaros, e voam pedras e pães, e bananas e peras (da quitanda da sua infância, que carrega no bolso). Houve palavras do Poema Sujo que não se encantaram. Continuaram sendo recordações da infância, ou grito de revolta pela perda do país da infância, mas não se tornaram poesia. Dou a mão à palmatória: algumas passagens do Poema Sujo envelheceram.
Ou, lidas no calor da hora, não deixaram ver que eram apenas banais. Relatos de cenas de sexo, vulgares, que imaginação nenhuma eleva à categoria de poesia. Gullar tem muitas cenas em seus poemas que não se elevam da sarjeta da vulgaridade - tudo em nome do protesto social, é a sua dor que sangra nas palavras.
Quando esse sangue vivifica as palavras, jorra a poesia, grande. Ninguém é perfeito, nem Gullar. Todos os poetas cometem os seus deslizes. Todos os poetas têm o direito de errar, fazer os melhores poemas do mundo e os piores (como diz Borges), até sem poesia. Às vezes a maior preocupação é a mensagem: é quando a mágica não acontece. Gullar é um mágico maior.
O Poema Sujo, com as devidas exceções, que confirmam a regra, está repleto de poesia maior, mágica maior. Só um exemplo: "É impossível dizer/ em quantas velocidades diferentes/ se move uma cidade/ a cada instante/ (sem falar dos mortos/ que voam para trás)" - e me calo, reverente."


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

MALALA YOUSUFZAI, ESSA TERRORISTA







MALALA YOUSUFZAI, ESSA TERRORISTA


Malala Yousufzai voltava da escola
de ônibus, no vale de Swat, no Paquistão.
Um homem gritou o seu nome e atirou para matar.
Um tiro na cabeça, outro no pescoço
prostraram Malala Yousufzai.

O Taleban reivindicou o atentado:
essa criminosa precisa ser eliminada.
Se sobreviver, será outra vez executada.
Essa menina de 14 anos, essa terrorista
que cometeu o crime de querer estudar.

“Ela é a vela da paz que tentaram apagar”,
disse o paquistanês Abdul Majid Mehsud.
Malala Yousufzai ficou famosa com um blog
– tinha 11 anos! – contando como era viver
sob o medo do Taleban paquistanês.

Ela não se calou em sua campanha
pelo direito da educação das meninas
– ganhou a maior condecoração do Paquistão,
mas o Taleban promete que vai matá-la
– essa pequena, mas terrível terrorista.