sexta-feira, 29 de novembro de 2013

BOCCACCIO E A IGREJA CATÓLICA


Comemorando os 700 anos do nascimento de Giovanni Boccaccio, sua obra mais popular, Decameron, ganha duas traduções no Brasil. A primeira, publicada pela Cosac Naify, com ilustrações de Alex Cerveny e tradução de Maurício Santana Dias, contém dez dos cem contos da obra. A segunda, da L& PM, com tradução de Ivone C. Benedetti, especialista em Boccaccio, é a versão integral deste clássico escrito entre 1349 e 1351, quando a peste negra devastou a Europa – são dez histórias por dia, contadas em dez dias por narradores diferentes, com o intuito de divertir os espíritos conturbados por tanta doença e morte. Boccacio foi o primeiro grande estudioso da “Comédia” de Dante, o primeiro a reconhecer o seu valor teológico e a denominá-la “A Divina Comédia”. Menalton Braft, na palestra inaugural do Encontro Regional de Academias de Letras, organizado pela Academia Bauruense de Letras, em 2012, disse que a literatura, como a entendemos, nasceu com o “Decameron” de Boccaccio.

Vou comentar o 2ª conto do 1º dia, a história de dois comerciantes de Paris, Giannotto de Civigni e Abraão. Giannoto quer por todos os modos converter o amigo para a religião cristã. Depois de muita insistência, Abraão vai a Roma ver como vivem os cardeais e o Papa, dizendo que se converterá se o exemplo de vida deles provar que a religião cristã é superior ao judaísmo. Mas encontrou-os vivendo uma vida de corrupção e luxúria. Como era um homem sóbrio e modesto, ficou escandalizado. Disse a Giannotto que o Papa e os cardeais fazem de tudo para apagar do mundo a religião de Cristo, em lugar de serem os seus sustentáculos e as suas bases. No entanto, compreendeu que a sobrevivência da Igreja é prova de que o Espírito Santo é o seu fundamento. E se não estava propenso a se tornar cristão apenas com os argumentos de Giannotto, agora não deixaria por nada deste mundo de fazer isso.

Esse judeu parece ter existido, o conto provavelmente baseia-se em fatos verídicos. A crítica à Igreja não é gratuita, e não tem intuito difamatório. O grande poeta Petrarca foi contemporâneo de Boccaccio e faz as mesmas acusações. São Francisco de Assis, do século anterior, recebeu do Senhor a ordem para restaurar a sua Igreja, mais preocupada com os bens materiais do que com a vida espiritual. Hoje um novo Francisco assume o dever de restaurar a Igreja de Cristo, acusada mais uma vez de se desviar da rota. Os católicos conscientes de sua religião nãos se preocupam. É como se raciocinassem como Abraão: se houve tantos erros por tanto tempo e a Igreja continua de pé, é prova de que o Espírito Santo está com ela.

José Carlos Brandão – professor, poeta e cronista. Publicou sete livros de poesia. Tem um livro de crônicas no prelo, “A hora do gavião”, que vai ser lançado pela Secretaria de Cultura de Bauru.

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O CÍRCULO PERFEITO DO POEMA


 
 
 
O CÍRCULO PERFEITO DO POEMA



O círculo perfeito do poema
Elide a sombra a cinza
Este é o reino do sol
E seus escorpiões

 

J. C. Brandão

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

AS ESTRELAS ESCURAS






AS ESTRELAS ESCURAS

 

As pedras fazem sombra sobre as palavras na página
A língua dói parte-se
A minha arte esmigalhada pela noite
As estrelas se calam escuras

 

J. C. Brandão

 

 

sábado, 23 de novembro de 2013

LIÇÃO






LIÇÃO

 

Ela me ensinou como se faz uma canoa
deitou no chão abriu o corpo me mandou remar







 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

ESPELHO ESPELHO MEU






ESPELHO ESPELHO MEU

 

 

Espelho espelho meu dizei-me ó dizei-me

Existe acaso imagem mais bela que esta

Existe paisagem mais bela que as nuvens brancas

Com a montanha no céu azul no cristal da água?

 

                       *

 

As nuvens refletidas no cristal

O espelho d’água como um cristal líquido

As nuvens dançam com a montanha

A brancura das nuvens no céu azul no lago azul

 

 

 

domingo, 17 de novembro de 2013

A ESTRELA PAIRAVA SOBRE OS AMANTES



 
 
 
A ESTRELA PAIRAVA SOBRE OS AMANTES

 


A estrela pairava sobre os amantes, sem ruído.

Era como um vidro do espelho quebrado.

Eu lia um livro de areia,

as letras se desfaziam nas minhas mãos.

 

O tempo se escapava entre meus dedos.        

A marca das minhas mãos na borda do poço.

A ampulheta quebrada, 

saía fumaça da cinza das horas.

 

A água alagava o barco,

as palavras batiam no casco furado.

Os olhos vazados boiavam na água

como peixes mortos.

 

As palavras desfiavam a história da água,

as pálpebras caídas entre as pedras do caminho.

As pétalas doíam na areia,

as imagens nítidas no cristal das lágrimas.

 

J. C. Brandão

 

 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Albert Camus, o trágico





ALBERT CAMUS, O HOMEM TRÁGICO

Estamos comemorando o centenário de Albert Camus, que faleceu em 1960, num acidente de carro. Numa viagem que nem deveria ter feito: ele e o grande poeta surrealista René Char já haviam comprado passagens de trem, mas seu editor Michel Gallimard insistiu e ele cedeu. Cedeu para morrer. O carro em que iam espatifou-se contra uma árvore. Morreu na hora, tragicamente.
Camus foi um dos mais jovens ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura, que geralmente é dado quase “in extremis”, um troféu de consolação. Camus estava no auge da criatividade, tinha 44 anos de idade e a vida inteira pela frente. Infelizmente, três anos depois, tinha também uma árvore pela frente.
Numa maleta estavam os originais de “O primeiro homem”, seu quarto romance. Numa nota, dizia que esse romance deveria permanecer incompleto. Às vezes o destino ajuda a arte, colabora maldosamente com a vontade do escritor.
Camus viveu numa época em que o absurdo era a visão do mundo mais coerente. O absurdo foi tema de vários ensaios dele, o homem absurdo no beco sem saída do mundo. É o tema de seu primeiro romance, “O estrangeiro”. Gestos gratuitos regem a vida do personagem Mersault. Por fim mata um homem e culpa o sol, como se fosse um agente do destino absurdo a comandar seus atos. Absurdo e trágico.
“A peste” é uma alegoria da guerra, que sitiava a humanidade como uma peste inexplicável sitiava a cidade fictícia de Oran, na Argélia. Quer coisa mais absurda que a guerra? E trágica.
Muitos consideram “A peste” o seu grande romance. Outros preferem “O estrangeiro”, com sua linguagem elíptica, frases curtas, diretas, rápidas, lembrando o estilo de Hemingway, mas seria um Hemingway amadurecido filosoficamente.  Esse “filosoficamente” é o que dará o tom a “A queda”, seu terceiro grande romance, uma prestação de contas das ideias de sua geração. É a tabula rasa do existencialismo. Fatal, trágico.
“O primeiro homem” é mais despretensioso. Tem a despretensão das grandes obras. É a viagem para Ítaca de Camus, a volta às suas origens. A primeira parte é a busca do pai, e a segunda, do “primeiro homem”, o menino que deu origem a Jacques Cormery, ou ao homem Albert Camus.
Costumo lembrar uma passagem casual desse livro. Parece estar ali por acaso – mas o acaso não quererá dizer muito no pensamento de Camus? Um barbeiro enfurecido passa a navalha na garganta de um cliente. O infeliz sai gritando para o meio da rua, sem perceber a garganta cortada até cair morto. Não é a ética do absurdo? Poderia ser uma visão da ética do nosso tempo, trágica e inconsciente de sua tragicidade.

José Carlos Brandão




segunda-feira, 11 de novembro de 2013

OS TORTURADOS






OS TORTURADOS


As imagens de febres insaciáveis
paridas no escorbuto não germinam
os ossos escorchados e produz
marcas fecais o fluxo dessa fonte

de águas alucinadas. Um lamento
é absorvido pelas frias larvas
que corroem o musgo dos olhares.
As algemas cruéis são ostentadas

em uma bruma de iras esquecidas.
É a elegia dos inertes como
balido interminável de uma ovelha

manchada no veneno da faca ácida,
na entrega sufocante sob o orvalho
da manhã. Quando tudo é consumado.

                                            (197...)






sábado, 2 de novembro de 2013

E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO - Dylan Thomas


E a morte perderá o seu domínio.
Nus os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.







(Dylan Thomas, tradução de Fernando Guimarães, em http://www.culturapara.art.br/opoema/dylanthomas/dylanthomas.htm)