quarta-feira, 27 de junho de 2012

ANUNCIAÇÃO - Cecília Meireles




Cecília Meireles – ANUNCIAÇÃO


Toca essa musica de seda, frouxa e trêmula
que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.


Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.


E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.


Toca essa musica de seda, entre areias e nuvens e espumas.


Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.


Cessará essa musica de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.


E a memória de tudo desmanchará sua dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.

                                 
                                   _______________


                                  in “Viagem”, 1930 

                                 Viagem foi o primeiro livro de poesia moderna premiado pela Academia  
                                  Brasileira de Letras.
                                  Anunciação foi o primeiro poema de Cecília Meireles que eu li, ainda na minha
                                  iniciação na poesia.


sábado, 23 de junho de 2012

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Era um cavalo todo feito em lavas - Jorge de Lima


Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.


                                               Jorge de Lima - "Invenção de Orfeu"


                                

 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

RELÓGIO - Cassiano Ricardo



Diante de coisa tão doída
conservemo-nos serenos.

Cada minuto de vida
nunca é mais, é sempre menos.

Ser é apenas uma face
do não ser, e não do ser.

Desde o instante em que se nasce
já se começa a morrer.

                                       Cassiano Ricardo



terça-feira, 19 de junho de 2012

CONFISSÃO - Carlos Drummond de Andrade

 


Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo o que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro – vinha azul e doido –
que se esfacelou na asa do avião.

                                        Carlos Drummond de Andrade

domingo, 17 de junho de 2012

A MORTE ABSOLUTA



                                     Ninguém escreverá
                                     a minha elegia
                                     quando eu me for.




sábado, 16 de junho de 2012

A LARANJA


 
Uma laranja rola
no meio do rio

rola
entre os peixes
e a água.

O sol brilha no alto.

A laranja rola
sem destino.




quinta-feira, 14 de junho de 2012

A ÓTICA DO TEMPO



Por que o futuro está à nossa frente
e o passado atrás?
Não poderia ser o contrário?

Não poderia haver a um objeto à nossa frente
que vimos no passado?
Ou alguém no futuro
não poderia estar bem atrás de nós?

E porque não poderia estar o passado embaixo
e o futuro acima?
O passado no fundo de um vale
e o futuro nas altas montanhas?

O futuro é misterioso para nossos sentidos,
para a nossa visão. Está atrás,
onde não o vemos. O passado,
que conhecemos, está à frente.

Como podemos ter memória
do tempo passado,
se ele estiver à nossa frente?
Ele seria quase o nosso presente.

Por que vamos querer o passado atrás
e o futuro à frente?
Por que queremos prever o futuro
se ele pode estar atrás?

O tempo não é mais
que uma questão de ótica.



terça-feira, 12 de junho de 2012

Poema para o dia dos namorados




CORPO


Eu te amo, te amo, te amo.
Três vezes bati na rocha:
jorrou sangue e amor.
O nome de Deus é o verbo,
o nome do amor é um corpo.
Nomeio o meu cavalo
como nomeio o amor: corpo.
Nomeio a vida
com o nome do amor: corpo.
Nomeio a beleza
com o nome do meu amor: corpo.
Corpo, corpo, corpo: amor.
Sangue que jorra da rocha: corpo.
Amor natural como o êxtase do corpo
no corpo.


- poema do meu livro Poemas de Amor, 1999.


segunda-feira, 11 de junho de 2012

O SILÊNCIO DA PEDRA





O SILÊNCIO DA PEDRA


A pedra fez silêncio.
A árvore deixou cair uma folha, uma fruta, um pássaro.
A folha pairava no ar, voava.
A fruta se esborrachou na pedra.

O pássaro pousou ao lado para comer a fruta.
Bicava o silêncio.
Canto fica para depois.
Agora a fruta, o chão verde, com poças d’água.

A água é vermelha e uma libélula beija.
Um menino caminha sozinho e chora uma lágrima quieta.
A pedra faz silêncio para ouvir a lágrima do menino.

O menino ergue o braço, o dedinho.
O pássaro vem sentar no dedinho, abre o bico,
mas faz silêncio, aprendeu com a pedra.






sexta-feira, 8 de junho de 2012

O ACASO E O SOL


 

Acabou-se o tempo das rosas
e das flores azuis.

A roseira secou,
acabou-se o seu templo de vida.

Sinto um sabor de chuva
e um cheiro de terra no ar.

Olho a libélula e fico feliz com o sol
iluminando o espaço aqui e agora.



quarta-feira, 6 de junho de 2012

A POESIA E O DENTISTA



“A poesia serve para tudo: substitui a anestesia
no dentista e não tem efeitos secundários”, diz o poeta
David Turkéltaub
e eu me lembro do meu poema em prosa A Árvore e a Cruz
imaginado na
cadeira do dentista
– no canal 4, em Santos.
Eu ouvia a broca monstruosa prestes a entrar
na minha boca
como um trator gigantesco esmagando pedras e árvores
e olhava pela janela a árvore frágil
mas teimosa
resistindo
junto ao canal.
Aquela árvore não morria afrontando o sol assustador
com seus dois braços abertos em cruz
(como Jesus).
Não era o deserto, não era a solidão
– nenhuma devastação,
mas eu via a imagem da solidão, da devastação.
Eu me imaginava com os braços abertos
naquela árvore,
agonizando
com o delírio da poesia nos olhos perplexos.