sábado, 28 de abril de 2012

A GRALHA



























 
A GRALHA


Eu vi a gralha no alto da araucária,
eu ouvi a gralha contra o céu azul.
Eu ouvi os catorze gritos nítidos
da gralha azul com seus bandos e clãs.

Eu vi a gralha construindo o ninho
sobre a coroa no alto da araucária,
estocando os pinhões nos troncos podres
ou encravando-os nas raízes soltas.

A araucária balança-se no vento
e voa e dança com as nuvens brancas.
A gralha voou de galho em galho
e riscou o seu grito contra o céu.

A gralha azul inventa o céu azul
e grita anunciando o seu domínio.
A gralha é absoluta na paisagem,
pousada no seu trono na araucária.







quinta-feira, 26 de abril de 2012

O udu




         O UDU


O udu-de-coroa-azul pousou
na árvore solitária à beira d’ água.
Saltita irrequieto de um galho a outro,
vigiando o seu ninho na areia.

Move a coroa negra na cabeça
sobre uma leve faixa roxa e azul.
Move o verde brilhante da plumagem,
o peito e o ventre são um sol dourado.

O udu na árvore canta grave: Udu!
Traz o nome no som do próprio canto.
É um mistério a sua presença verde.
O encanto da sua cor encanta a dor.

No silêncio da aurora ou do crepúsculo,
enquanto as águas correm sobre a areia,
mistura-se à folhagem a sua cor,
no êxtase da beleza de ouro puro.






terça-feira, 24 de abril de 2012

A DEUSA CAÍDA





                                   A DEUSA CAÍDA

A deusa caída,
mais que caída, despedaçada.
A deusa no chão, à sombra do pé de jatobá,
sobre a grama verde e as folhas secas.

A deusa caída, e nada mais importa.
A deusa caiu, que mais poderemos dizer?
O quanto havia de vida?
O quanto a sua existência, em si, prenunciava?
A deusa caiu, com a vida.

Os cacos da vida no chão, como os cacos da deusa.
O quanto de nós são cacos,
o quanto de nós ainda brilha como os cacos?
A indiferença da deusa caída, despedaçada,
mas com o braço erguido como quem não se importa
com nada (um braço, o outro está quebrado – oh, quanto
de nós está quebrado, no chão ou sob o chão, aos vermes).

O pedestal ao lado da deusa, caído também.
Vivemos caindo de nossos pedestais, que também caem.
Os cacos brilham como estrelas na memória.
Nós subsistimos, lutando contra o esquecimento.
Evoé!





segunda-feira, 23 de abril de 2012

DIA DO LIVRO


Minha homenagem (quase anti-homenagem, desculpem) ao Dia do Livro:



O LIVRO

         A tarde era cinza, fria, seca; o Zé olhava o sol-poente com lágrimas nos olhos.
– O que você fez da sua vida, Zé? – a Cida esbravejava.
         A fogueira acesa no quintal; queimavam os galhos da última árvore; folhas ainda verdes estralavam, no meio da fumaça.
         O Zé segura nas mãos negras de carvão um grosso volume de folhas já amareladas; conclui, por fim:
         – Eu queimo o meu livro.

                                                                                                                                                            jcmb





sábado, 21 de abril de 2012

PELICANO


                                         
                                  Abro o peito para o meu filho, o poema.





sexta-feira, 20 de abril de 2012

O PRÍNCIPE






























       O PRÍNCIPE



O príncipe é vermelho como sangue,
ou como o fogo de um rubi ao sol.
Chama-se príncipe ou verão, e brilha
incendiando o dia em chama rubra.

Traz uma capa negra sobre as costas
e o vermelho no peito e na cabeça.
Atrás dos olhos uma linha escura
para torná-lo de linhagem única.

Pousa nos galhos finos do cerrado.
No cio voa como uma borboleta
e canta e dança para a sua fêmea.

O príncipe se torna mais sanguíneo,
de uma luz ígnea, no êxtase do amor.
                                   Depois se apaga, sossegado, no ar.





quinta-feira, 19 de abril de 2012

O interrogatório de Rosa Luxemburgo




O interrogatório
De Rosa Luxemburgo
Durou apenas algumas horas. Ela sabia
Tão bem como os seus carcereiros
Que palavras ali já não existiam. Caída
Na batalha
Contra o nervo vital do Estado; banhada
Em sangue
E quase sem sentidos,
Rosa,
Frágil camarada,
Pediu aos caçadores seus assassinos
Agulha e linha. E, silenciosamente,
Com uma pistola apontada à têmpora,
Coseu a bainha da saia que se encontrava
Descosida. Pouco depois
O cadáver
Foi lançado à água.

Casimiro de Brito




quarta-feira, 18 de abril de 2012

RIDENDO CASTIGAT MORES




RIDENDO CASTIGAT MORES


Os falsos sentimentos são comuns nos seres humanos,
disse o poeta Joseph Brodsky.

A minha poesia não deve ser humana,
os seus sentimentos são tudo menos falsos.

Nada do que é humano me é estranho,
já dizia o romano Terêncio.

A minha poesia é estranha para quem não é humano,
concluo, mostrando os dentes e as garras.


 

terça-feira, 17 de abril de 2012

A EVOLUÇÃO DE RAUL SEIXAS A MILLÔR FERNANDES




A EVOLUÇÃO DE RAUL SEIXAS
       A MILLÔR FERNANDES


A evolução das espécies segundo Raul Seixas
e Millôr Fernandes

tem o seu princípio na mosca,
passa pelo coelho

e deságua no homem – apenas mais um elo
mal resolvido da história.




segunda-feira, 16 de abril de 2012

O OURIÇO



O ouriço eriça-se no vão da cerca
acuado pelo cão, que late, rosna
e fuça e ataca. Aguça as hastes
finas dos seus espinhos, e as aponta

contra o cão tão cruel que avança e morde,
e fica com a boca cravejada
de farpas afiadas como arpão.
Chora de funda dor o cão ferido.

Os espinhos penetram, rasgam, matam
de dor. Nascemos para a dor: doemos.
Nascemos para a morte, mas queremos
a viagem sem fim: a morte é de outrem.

O cão é testemunha cega e vã,
sombra feroz à porta do destino.
O ouriço crispa e eriça seus espinhos
            contra essa fúria desse cão-enigma.




sexta-feira, 13 de abril de 2012

A CHUVA, ORAS








                              



                            A CHUVA, ORAS


Chove lá fora
como um cachorro.
O mundo não vai acabar
apesar do vulcão.
Quem nos salvará?, perguntamos


e engolimos facas
e biscoitos do improvável.
Que poeira terrível,
que cinza densa me sufoca,
torna-se vidro


e tritura a minha alma?
Vontade de me jogar do alto de uma árvore
para dentro de um lago suave.
Meu barco está ancorado
porque não há timão que o governe


quando navega.
Verlaine,
onde Verlaine entra na história?
Ouço violinos e ciprestes
e pedras e cabras.


É João Cabral chamando-me à realidade?
É Rimbaud com suas aranhas
devorando violetas?
O vento me leva
e eu sei que a poesia


é água furando a pedra dura.





quarta-feira, 11 de abril de 2012

A ARQUITETURA DE UM POEMA





A ARQUITETURA DE UM POEMA


A arquitetura de um poema não é
a arquitetura de um edifício.
O edifício ergue-se no ar com toda
improbabilidade,
como se fosse desmoronar.
O poema é feito de uma estrutura
concreta: ar e sangue
para, contra todas as probabilidades,
nunca desmoronar.
A arquitetura do edifício do poema
implode e
levanta-se das próprias cinzas. 





segunda-feira, 9 de abril de 2012

O SAPO





O SAPO


O sapo veio da água, como a vida.
Como chegou do caos até aqui?
Que misteriosas sendas percorreu?
As estrelas explodem no jardim,

o bicho anfíbio busca a sua forma.
A luta pela vida continua:
o sapo caça a mosca com a língua,
a coruja contempla-o com fascínio

e gula, sob a noite iluminada.
O sapo foi, com a sua feiura,
o primeiro dos bichos do planeta.
Supérstite da Idade do Carvão,

carrega em sua pele dura a origem
da existência. Que Deus conceberia,
do nada, tal horrenda simetria?
Somos filhos de uma ancestral vertigem?






quinta-feira, 5 de abril de 2012

BORGES E PERON





BORGES E PERON


Quando Peron voltou ao poder
Borges despedido da Biblioteca Nacional

e nomeado para o cargo de inspetor de galinhas
disse dele É um miserável


Quando Peron pouco depois morreu
Borges disse dele É um miserável morto









terça-feira, 3 de abril de 2012

O CARDEAL





       O CARDEAL


Acordo o dia e a vida com a cor
do meu canto. O vermelho contra o branco.
Sofro a dor de existir com a garganta
por um fio. Um espinho sangra a flor.

A manhã azul toda se ilumina.
O galo-da-campina numa orquestra
de pássaros. A música da luz.
No peito chama, clama e açoita a dor.

Amor e dor fulgindo na coroa
da beleza. Eis a vida em plenitude.
O vento me levou, resisti quanto
pude. Nada podemos, quase nada.

O rubro, o branco, o negro conjugados
são a cor da beleza, o brilho e a sombra.
Nós levamos da vida o que vivemos
na nossa luta contra a morte em flor.



domingo, 1 de abril de 2012

O UIRAPURU



O uirapuru é pássaro esquisito,
por exilar-se no seu próprio canto.
O seu voo com as árvores confunde-se,
o canto é o que fica do que passa.

Esse pássaro, como o conhecemos,
a sua imagem rara, quase mítica,
nasce do canto e perde-se no canto
e é memória do canto nunca findo.

O uirapuru disfarça-se de flor,
com pétalas douradas e uma estrela
no cinzento das costas, um sol lírico,
em sua concha cria a luz da dor.

O uirapuru se inclina para o rio:
é a pérola oculta na paisagem
e embala o silêncio da prata d’água,
fechando e abrindo o dia com seu canto.



­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­__________



Quando eu iniciei o ginásio (há uns longínquos cinquentas anos), no livro de Português. havia um soneto de Humberto de Campos, “O uirapuru”. Havia algo de... poético, nesse soneto, que descobri que quase o sabia de cor ainda hoje: 

 
"Dizem que o Uirapuru, quando desata
A voz, Orfeu do seringal tranqüilo
O passaredo, rápido, a segui-lo
Em derredor agrupa-se na mata.

Quando o canto, veloz, muda em cascata
Tudo se queda, comovido a ouvi-lo:
O mais nobre sabiá surta a sonata
O canário menor cessa o pipilo.

Eu próprio sei quanto esse canto é suave
O que, porém, me faz cismar bem fundo
Não é, por si, o alto poder dessa ave.

O que mais no fenômeno me espanta
É ainda existir um pássaro no mundo
Que fique a escutar quando outro canta!"


Como eu estava escrevendo o meu “Livro dos bichos”, pesquisei e soube que o uirapuru é um pouco diferente da lenda e desse soneto. Então, escrevi o poema acima.