quarta-feira, 30 de março de 2011

ARTE DE AMAR



ARTE DE AMAR

Você se encostou num barranco.
Eu me encostei em você.
Fiz cócegas no seu sovaco,
você se riu todinha.
“Você está com a bunda suja
de terra”, eu falei e você se riu.
Eu me encostei mais em você.
Você estava fria como uma lagartixa.
Fechei os olhos e você ficou verde,
abri os olhos e você era vermelha
como o fogo, me queimava.
“Qual a cor do amor?”, eu perguntei
e você nem respondeu, vermelha só.
Passarinhada bateu asas, voou.
Você nuinha na terra vermelha.
Só nós dois sozinhos no mundo,
aprendendo as lições de amar.
O mundo é mais que um barranco,
quando se aprende a arte de amar.
 

            "Poemas de amor", 1999.



segunda-feira, 28 de março de 2011

A PALAVRA AMOR






A PALAVRA AMOR

Meu pai nunca disse a palavra amor.
Impossível imaginar.
Cumprimentava minha mãe: Bom dia!
Boa tarde!
Dava a mão. Nenhum gesto de carinho.
Mas levava café para minha mãe na cama.
A voz dele enchia a casa.
Enchia de um sossego bom que não pode ter
nome melhor que amor.
Gritava arroooi!!! quando trovejava, a gente dizia
            que era o grito de chamar a chuva
e esse grito não tem nome melhor que amor.
A gente se lembra dele, do meu pai,
            como quem reza.
Gozado! Ele não fazia nenhum gesto de carinho
            para a gente ou para a minha mãe.
Fazia doce de fio de ovos, fazia vassouras de noite
            na cozinha, trabalhava feito doido na roça,
falava da gente com orgulho, falava dos mortos
            com orgulho, dava orgulho ver ele falar,
            sempre de bem com a vida.
Para que é que serve a palavra amor?
                                              
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Li este poema no auditório lotado do SESC de Bauru, em 1999. Depois me envergonhei dele: não é um bom poema. Rasguei-o, nem me lembrava dele quando a minha prima Zilda o comentou – a minha irmã tinha uma cópia, que deu à Zilda. Depois encontrei um vídeo daquela apresentação no SESC – é um pouco mais longa, eu tentei consertá-la encurtando-a. Eu estava escrevendo os 40 poemas de amor e, sem querer (!), saiu este. Porque não era um poema de amor – à minha mulher, como os outros – e porque era ruim, deixei-o fora do livro “Poemas de amor”. Hoje, pelo que ainda possa significar, dedico-o aqui justamente à minha mulher.

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sábado, 26 de março de 2011

O poeta como anjo




                                                               
EU ERA UM ANJO

Eu era um anjo.
As asas me doíam no dorso cansado.
Os pássaros do sol
descansavam nos meus ombros.

Eu era um espantalho no milharal.
As palavras caíam dos meus bolsos.
Não havia mais nada a dizer,
eram palavras gastas pelo uso.

As árvores balançavam ao vento.
Os pássaros caíam como folhas secas.
Eu me deitei no húmus aconchegante
com as feridas expostas. 


CIÊNCIA

Estou só no universo.
Estou nu, exponho-me.
Ninguém me vigia,
ninguém dá por mim.

Penso quem sou,
infindavelmente.

Um campo de trigo,
dourado ao sol,
espera-me.

Ouço o moinho do tempo,
ensurdecedor.
Deus sabe-me,
                       mas, sábio, cala.


quinta-feira, 24 de março de 2011

TRÍPTICO




1.

Abro a janela para o terreno baldio
com suas cabras espantando os urubus.
O sol dá-me de chapa na cara,
poças d’água e árvores secas me olham.
A rua parada, sossegada, espera
a passagem de um burrico preguiçoso.
Quando saio, o sol continua a arder-me na cara
e o calor asfixia, tolhe-me o corpo, os pulmões estralam.
Uma nuvem branca caminha para o mar,
cada vez menos nítida, some no horizonte.
Os meus passos na calçada se apressam para nada.


2.

Côu, côu, côu! Vem, Neguinha! Vem, Teimosa, vem!
Seu Chico alimenta as vacas para ordenhar o dia.
A moenda de cana com os braços caídos para o chão.
Os cachorros latem balançando o rabo,
fungando com a língua de fora.
Um casebre fumega na beira do mato.
Procuro quem sou, quem fui,
com um aperto no peito, a alma saindo dos olhos bobos.
Um moinho abandonado apodrece num canto,
ao lado o tronco esquecido de uma peroba, do que foi uma peroba.


3.

Uma mulher nua no meio da rua, de pernas abertas para cima.
A molecada se assanha, uma pomba branca bate as asas.


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segunda-feira, 14 de março de 2011

Dia da poesia no fim dos tempos





O LEITOR E O POETA

O leitor gosta de um poema
porque pensa que foi ele que o escreveu.
O melhor poeta é aquele que desperta
o poeta adormecido no leitor.

O poeta vê as gotas de chuva na janela
e nas folhas do abacateiro, viu à noite,
    antes da chuva,
as estrelas multiplicando-se e apagando-se,
como numa grande brincadeira
                                                  – e escreve
como se fosse o leitor.

                                          O poeta é o mais abnegado
e desprendido dos seres: anula-se para que o leitor viva.
O poeta morde o lábio, morde a língua e sangra.
A poesia é feita de sangue, não de palavras.
                                                                    Estas são
um disfarce para a dor, cacos do espelho que chamamos
de poema.
                  O relógio resmunga na parede, como se fosse
dono do tempo.
                           Vai medindo, compassadamente,
a minha morte individual, diz o poeta, pensando
na morte coletiva.
O poeta pensa no seu irmão, o leitor,
tão íntimo e estranho ao mesmo tempo.
                                                              O leitor que lê

o poema como se tivesse ele próprio traçado, linha a linha,
aquelas linhas, aquelas palavras, aquelas imagens
que pulsam no bolso e, por pouco, não o derrubam.



NO FIM DOS TEMPOS

Talvez haja mil leitores entre um milhão de pessoas,
mas haverá cem leitores de poesia entre mil leitores?
Haverá dez leitores de poesia entre mil leitores?

Quantos leitores de poesia haverá entre mil poetas?
Os poetas leem os poemas dos outros poetas?

Sic transit gloria mundi – assim os poetas são:
passageiros, estranhos e indiferentes passageiros.


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           (dois poemas de Gregório Vaz)



sábado, 12 de março de 2011

Preparativos para o fim do mundo




O poema cresce independente de mim.
Eu o escrevo, escolho as palavras, as poucas imagens,
procuro controlar minha ânsia de metáforas.
Eu o escrevo, mas ele não tem nada a ver comigo.

O mundo lá fora é o que interessa.
O poema me expulsa do calor do ninho.
O poema me expulsa dos ovos com a vida regurgitando.
Há uma guerra lá fora e só essa guerra interessa ao poema.

Se uma gralha grita, é para estourar a paisagem.
Se o melro voa de um lado a outro do rio,
é para me lembrar que tudo passa,
que não é este lado
ou aquele que interessa.
Aliás, nada mais interessa.

Interessa o que está fora do meu controle.
Um frio me gela a espinha.
Parece que vou quebrar.
O meu poema caminha na rua,
quebrando o cimento
e a insensatez humana,
com a sua carga de dor
e estupefação.
           É como o fim do mundo.                                                             

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(Este poema está no blog do Gregório Vaz. Penso que merece mais visibilidade e o deixo aqui também.)


quinta-feira, 10 de março de 2011

A cigarra



                  
                                 
A CIGARRA

A cigarra é só cigarra

as asas diáfanas
imagem que pulsa

vibra o címbalo
do canto

imóvel no tronco da árvore.



terça-feira, 8 de março de 2011

O mar dos teus olhos - Homenagem à mulher


                  Jesus  Maria José - Portinari (foto na Igeja Matriz de Batataisi)


O MAR DOS TEUS OLHOS
 
O azul do céu e do mar nos teus olhos fundos.
Tudo são limites e enigmas, mesmo os teus olhos.
Neles uma rosa sangra como um punhal.

Delirávamos, em êxtase,
com a beleza da morte dentro dos teus olhos.

Quem nos disse da presença de Cristo
no mar trágico dos teus olhos?

Você tinha a chave na língua.
Eu carregava a âncora nos ombros.

Pescamos cestos e cestos de peixes no mar dos teus olhos.
Vamos dar de comer a multidões.

Você levantava muito alto um peixe cintilante na mão.
O peixe era belo como o crepúsculo.

Sentamo-nos à mesa e nos servimos de pão e vinho,
com o mistério da morte e da vida nos teus olhos e nos teus lábios.




domingo, 6 de março de 2011

Quinhão




 
À ENTRADA DA CAVERNA

Um pássaro
cantava

à entrada
da caverna.

Quando saí
para ouvi-lo,

desfez-se ao sol.


QUINHÃO

Caminhamos no deserto,

o nosso quinhão
do universo,

sob a tempestade de luz do verão.


A ALMA LEVE

Prostro-me por terra
na vinha do Senhor.

A uva tinge-me o corpo
e a alma leve.


A ESCADA DE JACÓ

Sobe a escada de Jacó
e luta contra o anjo,

luta contra Deus.
Tua derrota

será tua vitória.
Tua hora é agora.


AMÉM

Sou filho
da dor

e caminho
orgulhoso

de meus irmãos.
 


quinta-feira, 3 de março de 2011

ASPIRAÇÃO




ASPIRAÇÃO

Aspiro ao sublime
os cavalos, as vacas, os bezerros ao sol
com gratidão e maravilhamento

O que eu queria mesmo era ver Deus
por enquanto me contento com o sol
a água nas cascatas nos rios na torneira

por enquanto vejo as luzes da cidade
acesas neste momento
e pulsando como um pulmão.

É tão bela a vida que me calo
já disse que vi meu pai e basta
hoje digo que vi meu filho e basta.


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Este poema e os três anteriores – Contemplo o templo, Pomar e O pássaro e a pedra – foram escritos no final de janeiro. Chamei-os de Poemas de aniversário. Foram escritos num período de (como eu chamei) surto criativo de meu heterônimo Gregório Vaz, que escreve poemas escuros e descuidados, mas são luminosos porque nascidos num dia especial para se dar graças pelo dom da vida.

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terça-feira, 1 de março de 2011

Contemplo o templo




                                 
CONTEMPLO O TEMPLO


Olhem o mar!
Olhem aquele rochedo enorme
coberto de espumas brancas
e gaivotas
e o horizonte renovando-se a cada momento.

As minhas pegadas na areia
que as águas apagam
as minhas pegadas crescendo com o canto do mar
o sol nas minhas costas
carrego o sol como um cavalo à beira-mar.

Lembro um esquilo
é uma lembrança mínima
disso que se chama poesia
o esquilo me olhando num rochedo à beira-mar
com a linguinha de fora.

Não era preciso mais nada
havia muita água
areia, pedras, peixes
o grito das gaivotas e o canto do mar.

Entro no mar, deito-me na água, flutuo
a água me envolve, o sol por cima
não existe maior sensação de plenitude
o mar e as montanhas
o céu azul infinito e a face de Deus.