segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

As palavras de fogo

                     

                               

AS PALAVRAS DE FOGO

 

Piso as uvas no lagar.

Deus me açoita com uma vara de palavras.

 

Ouçam a harpa no escuro.

Ouçam a harpa gemendo como uma estrela estrangulada.

Ouçam a harpa.

Eu ouço a palavra.

Os vergões da palavra me comem a carne.

 

O mar me levou no seu sal inclemente.

O mar me levou para o horizonte branco.

O mar me cobre com seu lençol de espumas.

Deixei minha alma nas guelras de um peixe triste.

Mendiguei às portas dos pobres.

Mendiguei às portas dos soberbos.

Mendiguei as varas de Deus com suas palavras de fogo.

 

Saciei a minha sede com a água amarga.

Os cães me rodearam, farejando as minhas feridas.

Estou marcado a ferro pela palavra de Deus.

 

(jcmb - 2007)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A mesa dos mortos

Um socó desafia uma garça, abaixo da Ponte Velha, de Barra Bonita,
apontando para a estrada de Igaraçu do Tietê, de 1 km. que eu garbosamente 
percorri muitas vezes brincando, quando criança.




A MESA DOS MORTOS


Os mortos acordam, sentam-se à mesa comigo.
Têm pedras nas mãos e pássaros sobre os ombros.
É perigoso que as pedras matem os pássaros.
As palavras são pesadas como pedras.
Às vezes é preciso que as palavras matem os pássaros.

A minha mãe e o meu pai contam histórias.
Têm terra na boca e contam histórias.
As suas palavras são como a água no meio do mato.
Nas suas palavras, a alma de todos os que vieram antes.

O meu avô corta lenha com um machado negro.
O machado do meu avô corta a lenha da memória.
Se é verde, fica a secar ao sol.
É preciso apagar a memória das árvores.
Tanta água represada.

Deus preside a conferência dos mortos.
Deus guia a minha mão.
Não escreve por mim: muitas vezes apaga o que escrevo.
Deus me ensina: as palavras morrem.
As palavras precisam apagar o que existe.
É preciso deixar lugar para o eterno.




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            Poema de 2007.

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A pedra da memória

Rio Tietê, com olarias ao fundo, visto da Ponte Campos Salles, a "Ponte Velha"
ou "Ponte de Ferro", entre Barra Bonita e Igaraçu do Tietê, SP.




                               
A PEDRA DA MEMÓRIA


Plantei a pedra da memória na montanha.
Passei por aqui, neste lugar morreram
os meus pais, meus irmãos, meus avós.
Este é o tempo do infortúnio.
Jejuei na gruta do abandono
com os morcegos e as traças.

Os meus pés amassavam a argila de Deus.
Os meus dedos iriam, um dia, moldar a argila
em forma de cântaros preciosos.
Os meus lábios lhe iriam dar vida
com o sopro do verbo.
O verbo de Deus sopraria dos meus lábios
e os cântaros cantariam a música do eterno.

As cidades miseráveis do homem.
Os labirintos de cifras das cidades do homem
edificadas sobre o farelo dos desejos.
As palavras são intermináveis e não dizem nada.
Os lábios não beijam,
as línguas estão secas da saliva do espírito.
Os corações não têm sangue, mas números.
Os livros contêm resultados, são a tumba do olvido.

Eu sou o filho pródigo, retorno à casa do Pai.
Os jornais recolhem os excrementos das moscas,
eu retorno à casa do Pai.
O povo delira sob a fuligem do céu,
sob os tetos de vidro e aço,
exposto ao sol negro, que queima a alma.
Eu volto derrotado à casa do Pai,
mas ainda tenho o verbo de Deus nos lábios.

Os espinhos perfuram os meus pés.
A urtiga dilacera a minha face.
Somente o verbo fala comigo.
Ouço, no vento que passa, a voz de Deus.
Não entendo o mistério, mas sei que ouço a voz de Deus.

Um pássaro voou da árvore de fogo,
pousou no meu ombro com as garras vermelhas,
cantou as sílabas do verbo, impronunciáveis.
Amei a beleza desse canto, decifrei seu enigma:
é a rosa, a essência da rosa, a face de Deus.

Prostrei-me diante do altar.
Voltei as costas aos ratos insaciáveis.
Sigo a estrela. A porta está aberta.
Carrego nos ombros os cântaros do verbo,
com a água límpida do espírito.




segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A SUBLIME POESIA DA SÔNIA BRANDÃO

                          


                             Esse SUBLIME eu diria que é um bocado exagerado.
                             Mas considero a poesia da Sônia de excelente qualidade.
                             Vale a pena conferir a seleção de poemas que o Benilson

                             fez em seu blog  A NOVA POESIA BRASILEIRA



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As águas do eterno






AS ÁGUAS DO ETERNO

As águas correm, correm para sempre.
Sou só, sou a paisagem verde e Deus.
Uma garça branca pousa na margem do rio.
O sol pousa no horizonte vermelho.
Por que contemplar? Por que a luz, o êxtase?
Além do horizonte ergue-se um novo horizonte.

A árvore se transfigura, como Cristo.
A árvore sofre, agoniza, como Cristo.
Os frutos pendem da árvore, como pássaros maduros.
Colho os frutos e canto e conheço.
Como o sol, as águas correm para sempre.

A terra seca, o deserto onde não medra a semente.
Não edifico a minha casa nessa terra.
Este é o campo da penumbra.
Este é o campo da penúria, do silêncio seco de Deus.
Preciso de água para a minha argila.
Preciso de argila para o meu cântaro.
Preciso do cântaro para a minha face.
Modelo a minha face à imagem da face de Deus.
As águas correm para sempre.
Onde as águas que correm para sempre?

As vigas da minha casa estão podres.
Onde a palavra nova que sustente a minha casa?
Ouça o vento, que enferruja o arado.
Ouça o lamento dos sulcos, que esperam a semente.
Ouça a semente amarga florindo no meu túmulo.
As águas fluem, os horizontes fluem.
O pássaro e o trigo fluem, com a terra amarga.
No princípio era o verbo, eram os alvos lençóis.
No princípio eram as águas.
No princípio eram as garças brancas sobre as águas.
E as águas correm para sempre.



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 Foto na ponte sobre o rio Tietê, na divisa de Barra Bonita e Igaraçu do Tietê, onde passei os últimos anos da minha infância.

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sábado, 22 de janeiro de 2011

Elegia da lama

                                                                                            imagem: web

                                    


Elegia da lama


Uma rosa vermelha
afoga-se na lama

Uma mulher se ajoelha
coberta de lama

Repete-se o dilúvio
num mar de lama

A vida perde o sentido
coberta de lama





quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Coisas



                               
A PALAVRA COISA

A poesia da palavra coisa.
O seu silêncio de ovo, de relógio.
A coisa é uma pedra no poema,
pedra de toque, fora e dentro: essência.


HORIZONTE

Chove lá fora, além das montanhas
no horizonte em frente
e num outro horizonte com que sonho sem fim.


FLOR DE PEDRA

A flor nasce na pedra,
a flor medra na pedra.
Nasce, medra, como tudo
para morrer.


NOTA

No velho livro,
uma data e a nota:
“Trocaram o nosso gato.”


NO MEIO DO CAMINHO

Tinha uma pedra no meio do caminho.
Pus de lado e sentei em cima
para descansar.


COMPOSIÇÃO

Entre coisa e cousa
componho o poema
com giz e lousa.


O GUARDA-CHUVA

Abro o guarda-chuva
contra as águas do dilúvio
e morro afogado.


ELÉTRICO

Meu céu ficou elétrico
na objetiva da minha câmara
e nas minhas retinas.


 A COISA
 
A poesia é uma coisa
que ninguém sabe o que é
e se soubesse, o que adiantaria?





terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O espelho de bronze




                               
O CANÁRIO

O canário de ouro
entre as folhas da árvore
e os meus olhos.


A SOMBRA DAS NUVENS

Somente as nuvens fazem sombra
sobre as pedras e a areia do deserto.


O ESPELHO E O PÓ

O espelho reflete o pó sobre o relógio.
O pêndulo, pesado de sombra, não para.


VIRGÍLIO

Virgílio escreve o poema
do mar, dos deuses e dos homens.
Aos poucos a sua coroa de louros
transforma-se em bronze e ouro.


EVA

Eva recebe da serpente
uma maçã
e a minuciosa arte de amar.


O ESPELHO DE BRONZE

Eu sou aquele que esquece.
Eu sou o esquecimento.


ESCREVO PARA NÃO ESQUECER

A poesia é filha da memória.
As imagens no espelho se iluminam
sob as águas do esquecimento.


A ROCA

O fio segue-se a outro fio
e a meada se completa.
E a roca a fiar, a roca a fiar.


O HIBISCO

O hibisco estende o pecíolo
à frente de suas largas pétalas.
Ofertório à beleza vermelha.



domingo, 16 de janeiro de 2011

Cruzamento perigoso




                            
AS VACAS

As vacas pastam a tarde
à beira do canavial.
Nuvens brancas, céu azul.


PLACA

A placa amarela
CRUZAMENTO PERIGOSO
e um cachorro morto.


RESINA

O tronco cortado
da velha árvore doente
e o ouro da resina.


O VENTO LEVA

No tronco cortado
a imagem de um coração
e a serragem ao vento.


O NINHO

O pequeno ninho
e a dança do beija-flor
ao vento da tarde.


O HIBISCO

O hibisco vermelho
entre as folhas verdes
que a lagarta rói.


A PALMEIRA

A palmeira verde
no pasto à beira do mato
e as flores azuis.


O QUERO-QUERO

A flor amarela
e a marcha do quero-quero
à beira do lago.


JANEIRO

Céu de janeiro.
As nuvens cobrem
todas as estrelas.


O ESTRANGEIRO

Sou um estranho no espelho.
E as nuvens passam
sob o sol que fica.



sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Uma parábola




UMA PARÁBOLA


Você sabe a diferença entre o filósofo e o teólogo? O primeiro é o homem cego num quarto escuro procurando um gato preto. O segundo é o homem cego no quarto escuro procurando um gato preto que não está lá.
Essa historinha foi um teólogo quem me contou. Como sou poeta, vou meter o bedelho e continuar. O terceiro é o poeta: o homem cego no quarto escuro procurando um gato preto que não está lá, com uma pedra em cada mão.
O filósofo não encontra o que procura, mas sabe que está lá. O teólogo também não encontra o que procura, mas sabe que existe. O poeta é cego como os outros, porque todo homem é cego, mas bate uma pedra contra a outra e vê a iluminação no escuro. Saber que existe essa iluminação lhe basta.



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O outro deserto (poeminhas)




O OUTRO DESERTO

Na areia sob a água
a memória do deserto.


O PÁSSARO AZUL


Eu vi um pássaro azul.
A paisagem está perfeita.
Nada mais é preciso.


A ROSA

As pétalas como lábios
da beleza viva.

 
IMAGEM

Sou uma imagem
na água turva do tempo.


INFINITO

Infinito como a areia
o bronze do mar.


O SOL DA GALINHA

A galinha e a sombra
uma minhoca medrosa
o mundo do sol.


LÁZARO

Por que Lázaro volta à vida
com a memória das estrelas
e da areia do deserto?
Bastava-lhe um infinito.


CAVERNA

Nas paredes da caverna
dormem figuras estranhas
e uma sombra, talvez a minha.


A ÁRVORE SECA

A árvore seca
as águas do rio correm
sob o céu azul.


AS GALINHAS

As galinhas marcham
no galinheiro apertado
exercício ao sol.







sábado, 8 de janeiro de 2011

O gavião e a pomba




O GAVIÃO E A POMBA


O gavião grita no ar, mas não é o seu grito de alerta, vitória e domínio. É um grito de medo. Um bem-te-vi persegue-o, bica em desespero furioso o seu dorso, o pescoço, as asas frágeis.
O gavião carrega uma pomba nas garras, seu troféu, seu alimento. Voa no baixo, sem velocidade, é presa fácil de pássaros menores como o bem-te-vi. Foge de uma árvore a outra, não consegue esconder-se.
Logo mais dois, três bem-te-vis somam-se ao primeiro no ataque ao inimigo. O gavião larga a presa no meio da rua. Observo temeroso a pomba encolhida entre os carros, vítima do trânsito feroz.
O gavião busca abrigo na torre da igreja. Os desvalidos sempre procuraram refúgio na igreja. Hoje o gavião é um refugiado, e a igreja – a Igreja Santa Teresinha – há tempos é a morada de sua família.
Levo a pomba para casa. Sangra, as garras do gavião penetraram-lhe o corpinho delicado.  Pulsa, com um fio de vida, não deve resistir muito. Seguro-a com cuidado entre os dedos. A Sônia trata as suas feridas, aproxima-lhe pão embebido em leite do biquinho trêmulo.
A morte pinga dos seus olhinhos angustiados.
Ela dá duas bicadas fracas num pedaço de pão. Depois, pende a cabeça para o lado, deixa cair um último suspirozinho, e morre.
Enquanto escrevo, ainda ouço o grito do gavião. Mesmo quando o gavião tem a sua hora de fraqueza, e não pode fazer outra coisa a não ser fugir, mesmo assim tem as garras mortais.
A Sônia lembra a pombinha e, como se estivesse compondo um poema, entoa:
– Eu a alimentei com a morte.



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Esta é minha última crônica, de hoje. Tentei fazê-la pequena, de umas dez linhas. Precisei de três vezes mais.   

Há leitores que se confundem com o título deste blog. Como se a palavra "crônica" fosse adjetivo de "poesia" : a poesia quase como uma doença crônica - ou, vá lá, qualidade ou estado de espírito constande do autor. 

Não meus caros: Quem não me entendeu, desculpe-me. Este blog foi criado para postar crônicas e poemas. Principalmente crônicas. 

Depois, sentindo a dificuldade de se ler crônicas ou qualquer texto um pouco longo, num blog, fui deixando-as inéditas. Ou mesmo deixei de escrever. 


Era o mote que voltei a expor lá no cabeçalho: um registro do tempo que passa.


Esta crônica de hoje narra um fato que a Sônia já registrou em um poema, com a concisão lá dela. Está aqui, no nº 6 destas belas inscrições.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

TÓLSTOI ESPERA O TREM NA ESTAÇÃO DE ASTAPOVO

                                                                 Estação de Astapovo - foto da web
                        

                          
TÓLSTOI ESPERA O TREM NA ESTAÇÃO DE ASTAPOVO

Tolstoi espera o trem na estação: é preciso partir. Todos
esperamos na estação: a partida é inadiável.
A fumaça sufoca, turva
os olhos, cega e estonteia
e nem percebemos que o trem chegou
e partimos.

É noite. Mar, rochedos, estrelas.
Os mortos desfilam aos pares, cantando uma canção interminável.
Um cachorro balança o rabo para os homens.
Tolstoi dorme num canto, à espera do trem.

O que é a verdade?
Por que Deus não fala alto e claro?
Por que os homens não ouvem as palavras de Deus?
Pai!
Ó Pai, por que me abandonaste?
O cristal do cálice se parte
sob as pálpebras.
Pendo a cabeça à beira do poço. Tolstoi e eu morremos na estação
de Astapovo.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

As palavras no jardim




AS PALAVRAS NO JARDIM


As palavras crescem no jardim
entre as pedras
e os cavalos descuidados.
Têm cicatrizes
ou tatuagens
na fronte
como flores sinistras
dançando no abismo.

Qual a chave?
Que símbolo me revela?

Os cabelos crescem nos telhados
e debaixo da terra,
vermelhos.
O sol derrete o chumbo
dos cata-ventos.

Um galo canta
no monturo
a verdade
escrita com sangue.
Crescem as unhas
do tempo.

A linguagem
dos peixes
no vento
acorda antigas crenças.

Dai-me
a âncora
do mundo,
ó timoneiro da aurora.