sexta-feira, 29 de julho de 2011

A ARGOLA
















 Foto da varanda da casa da minha infância - quase como era há tantos anos.


A ARGOLA

Uma argola solitária na varanda
da minha infância.
Solitária,
inútil,
equivocada:
nunca
nada foi ali pendurado.
Sempre amei as coisas que não significam nada.
Por acaso amei essa argola
de que ninguém se lembra:
enfeite,
estorvo,
encalhe. Certamente linguagem
em sua solerte mudez: memória
no poço fundo
afogada na água suja do tempo e seus dejetos.

Uma argola na varanda,
no pescoço,
nas ventas.
Onde estou, nesse espelho côncavo, convexo, vão?
A minha imagem
perdida
pendurada
na varanda
como uma argola enferrujada no fundo do poço seco
desmoronado
com a casa
e seu sangue, em silêncio.
Deus lê o meu poema com uma esquiva alegria
e nenhum escárnio. Rara a vida e a argola.


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                               Gregório Vaz deixa uma mensagem na garrafa.





quinta-feira, 28 de julho de 2011

Travessia




























A travessia

Dá vau o rio,
deste lado? Mais acima?
Eu quero o horizonte, onde a terra
acaba.
Eu quero o fim do arco-íris, na água calma
do crepúsculo.

Dá vau o rio do tempo,
dá vau o rio do eterno
correndo e parado, onde a terra se encontra com o céu?
As árvores bebem
as nuvens – são água
e os pássaros com sono
entre as folhas
e os ramos – são frutos e piam e cantam.

E eu a me afogar no rio do esquecimento
com os peixes mortos
e o latido dos cães
pendurados nos ponteiros
do relógio.
Ergo os braços da água e respiro o ar de Deus.

As casas se acendem,
as estrelas,
os aviões
e os meus olhos como dois tições
e a minha alma queima à beira da terra, à beira do céu.
A minha alma se consome e se completa na água vermelha.


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terça-feira, 26 de julho de 2011

AS ÁGUAS DA AURORA





























AS ÁGUAS DA AURORA

A casa clara brilhava tanto
que nem se enxergava onde estávamos.
Os lençóis nos varais, alvos,
coavam a luz do sol.

As jarras de leite derramado
na cozinha, no curral, no pasto largo.
A terra era nossa, deitávamos sob as árvores
ouvindo os pássaros de Deus.

O orvalho caía sobre nós
como sobre a couve e a alface.
As garças pintavam de azul o céu da tarde,
depois pastavam a terra sob as vacas.

O vento madrugava se espreguiçando
de um coqueiro a outro.
O córrego cantava claro
jogando pedrinhas nos inhames.
Eu saía a galope para além do horizonte,
nunca mais voltava.

Deitávamos na terra,
nos lambuzávamos de terra
até nos olhos, na boca, nos fundilhos.
O melro cantava no telhado verde
anunciando a claridade das águas da aurora.



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... e apresento A mendiga no blog do Gregório Vaz



quinta-feira, 21 de julho de 2011

A ÁGUA NEGRA









A ÁGUA NEGRA

A caixa d’água no escuro do sótão não dorme.
Um demônio vigia e ronca no cotovelo da escada.
Os mortos nunca estão suficientemente lavados.
Ouço no fundo do inferno o canto de Orfeu.

As idéias se afogaram no bronze salgado do mar.
Os ratos insones passeiam no cemitério dos navios.
Onde o ouro obscuro que tanto me atrai e mata?
O vento se envergonha do corpo nu de Eurídice.

Pendurei Eurídice pelos cabelos no mais alto mastro.
Os marinheiros com a garganta seca gritam de sede.
Os tambores rubros retumbam, os canhões explodem.

A guerra não tem fim, os campanários desabam no caos.
A água negra inunda a casa do sótão até o porão.
O meu anjo da guarda perde as penas das asas negras.



domingo, 17 de julho de 2011

O AFOGADO

      




















O afogado

O mar trouxe o corpo à praia.
Era um estrangeiro, jovem e belo.
A boca aberta deixava ouvir, como se viessem
do outro mundo,
as vagas do mar e os gritos brancos das gaivotas.
Eu lhe fechei os olhos, azuis como o céu
através das órbitas de uma caveira.
A sua nudez lhe tornava a pele mais pálida.
Sorria perplexo, como se reconhecesse num espelho
a nossa estranheza.
Olhando-o, nós sabíamos:
também temos, em vida, o céu nas órbitas
e a morte nas pálpebras.



quinta-feira, 14 de julho de 2011

ELEGIA DE ABRIL

























ELEGIA DE ABRIL

O jardim seco,
a terra se esfarela como farinha de pedra.
Nem os lagartos passeiam entre as pedras, ao sol.
Ainda brilha o sol
e queima como fogo, como ácido.
Espero o sopro da morte
com a memória dos mortos na palma da mão.

Derrotado, ostento
os meus andrajos como bandeiras desfraldadas ao vento.
De minha casa não restam nem as ruínas,
apenas o eco ribomba sob a terra.
Eu me olhava no espelho e não me reconhecia,
olhava novamente e já era outro;
hoje todos os espelhos estão quebrados.
O último baú que abri (quando eu ainda tinha baús)
guardava o meu próprio esqueleto.
Eu me perguntava: como não estou morto, Senhor?
Deus se calava, apascentava as ovelhas do eterno.

Conheço a desolação com um nó na garganta.
Ainda vejo minha mãe aos prantos na beira da estrada,
ainda vejo meu pai na beira do poço
e os meus irmãos perdidos no mundo.
Nós ouvimos o Verbo de Deus,
sofremos todas as desgraças da nossa idade.
A idade do homem é a idade do escárnio,
eu me cubro de cinza e saio pelos caminhos.

Esta é a idade do escárnio, esta é a idade do escárnio.
Eu sou um fraco.
Não aprendi a orar
nem conheci a cegueira dos puros.
Eu tenho uma espada na garganta
para que não conspurque a palavra.
Eu tenho uma espada no peito
que me exaure as forças.
Deus trouxe a espada ao mundo.
A luz vive no eterno, amém.



quarta-feira, 13 de julho de 2011

A ZEBRA









A zebra

A zebra dispara rumo à água, incha
como uma estrela, suas patas são um
prodígio.

Debruçada no espelho azul,
vê como o mundo escurece, nas linhas
paralelas sem infinito que as acolha.

É zebra nas patas e nos flancos,
com um arrepio na língua
inútil.

É lírica na rosa e nas guelras
até ao centro
da estrela.

Bebe a água com angústia, as mandíbulas
tensas,
trêmulas.

Inaugura o falo no poema
em que se banha
e se renova como um broto de luz ou sândalo.




domingo, 10 de julho de 2011

A SERPENTE



 
A SERPENTE


A serpente rasteja sobre a areia e as pedras
do deserto.
Atenta, escuta o mundo com o corpo sibilino.

Amadureço,
hipnotizado pelo olhar da serpente.
 Sob o sol e o vento, 
permaneço. 

Cego
pela areia, o sangue envolve-me
e é noite em mim. 
A estrela
na fronte da serpente queima como fogo.

A noite se revela em sua arquitetura
abissal.
Curva,
turva,
paralela ao ímpeto da serpente, no ar.

A constelação
da existência
encolhe-se na língua bífida da serpente. 




sexta-feira, 8 de julho de 2011

A BANANEIRA











 


A bananeira


As palmas da bananeira 
abanam a tarde

As bananas amarelas
como ouro

É a musa do paraíso 
e canta

Embala 
o umbigo do mundo






quarta-feira, 6 de julho de 2011

APOCALIPSE


























APOCALIPSE

Comi o livro que o anjo me estendeu.
Comi o livro em êxtase, lírico e doce,
Mas amargo nas entranhas, fel e fogo.
Era o livro de Deus, dando-me o mundo.
Era o livro do mundo, dando-me Deus.

Os homens e as cidades queimaram-se.
Vomitei o enjoo e o pânico da morte.
A morte me envolveu em seus braços
Como a minha mãe e o último algoz.

O livro contém todas as palavras,
As palavras são o princípio e o fim
Da vida, em sua conjugação eterna.



sexta-feira, 1 de julho de 2011

Pôr-do-sol
















       

             PÔR-DO-SOL

O sangue e o leite alimentam a noite.
Bois e vacas mugem no alto do monte.
Eu contemplo a primeira estrela.
Tenho uma vela
na mão
e a face iluminada.
O meu coração bate devagar.
Uma mulher abre a janela
e grita o nome do marido.
Por mais claro que tenha sido o grito
só se ouve o eco: “ido, ido, ido”.
Depois, o silêncio.
Poderia se ouvir a queda de um lágrima.
Por que estou tão aflito?
O que me angustia?
As luzes da terra bebem as luzes do céu.
O mundo está em paz,
as coisas bocejam com sono.
O dia se põe como um cão.