sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

OS BURACOS NEGROS






OS BURACOS NEGROS
                                  

Deus dialoga com o diabo
sentado na ponta de uma tábua, o diabo na outra ponta.
A tábua estendida como uma gangorra sobre um buraco negro.

“O Senhor criou tudo que existe, o sol e as outras estrelas
e os buracos negros, que um dia vão destruir toda a Criação
e o Criador junto?” – disse o diabo.

“Vou cuidar disso” – disse Deus e levantou-se da tábua
deixando o diabo ser sugado pelo buraco negro.









quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O MENINO E A MENINA



 
O menino e a menina
caminham pela estrada
com um sorriso cúmplice
nos olhos e nos lábios.

A estrada é torta e larga,
com árvores e pássaros,
terra, pedra e alegria
à direita ou à esquerda.

Ninguém conhece ao certo
a alegria do menino
e a alegria da menina
na estrada empoeirada.

O menino dá a mão
para a mão estendida
da menina feliz
e suas almas caminham.

Não há maior prazer
no mundo do que olhar
essas duas crianças
na estrada nessa tarde.



terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O SOBREVIVENTE





O SOBREVIVENTE


O longo muro de pedras sobe a montanha.
Numa das pedras vejo as letras do meu nome
gastas, apagadas pelo tempo.

Mas eu sobrevivi.






sábado, 24 de dezembro de 2011

NATAL EM BAGDÁ




Natal em Bagdá (1998)


A bomba desenha uma cruz em Bagdá,
A estrela explode antes de nascer,
A mulher rasga com as unhas o ventre ressequido,
Dois olhos vazios me olham de lugar nenhum.

As árvores estão despidas como esqueletos,
A rosa não tem mais nenhuma pétala,
A raposa e outros bichos tristes choram no deserto,
O universo é um cogumelo gotejando.

Profeta sobrevivente do exílio,
Já não tenho voz e canto à beira da estrada.
Todas as crianças têm a garganta cortada,

O sangue das crianças colore a aurora.
Um menino queima sobre a palha,
Das suas cinzas o novo homem vai renascer.








sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

NATAL 1999






NATAL 1999
                              
                               ”O menino nasceu morto”
                               (Natal 1964, Murilo Mendes)

Deus nasceu na estrebaria.
A estrela brilha no alto céu
e ilumina o universo.
Os pastores seguem a estrela,
os reis magos seguem a estrela.
Deus nasceu e essa verdade
é tudo e nada.
Sobre o feno,
Deus respira
com um burro, uma vaca,
alguns animais.
O rito
que é nada e tudo
se veste de palha.
Uma estrela se apaga,
outra nasce.
A vida prossegue.
Os homens não seguem
a estrela.
A palha queima
e nenhuma estrela desce
para a minha companhia.      
Deus não cresce
na estrebaria.
Os homens não são mais sábios
nem mais naturais.
A vida prossegue
com a poesia
dos animais.
Somos feitos de adeuses,
uma pouca cinza fria.
Deus perece
na estrebaria. 





quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A PARTÍCULA DE DEUS





A PARTÍCULA DE DEUS


Não sei se existe uma partícula de Deus
ou a primeira massa
depois do Big Bang.
Não preciso explicar a origem do universo.
Enquanto se procura o bóson de Higgs
com o Grande Colisor
de Hádrons
de Cern,
eu continuo a me extasiar com as panelas
da cozinha
ou com o infinito das estrelas.





segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

UM COPO DE SILÊNCIO





























UM COPO DE SILÊNCIO


Guardo no meu poema, como num copo,
a imagem líquida das coisas.
A tinta é líquida, a tinta das minhas palavras.
As minhas palavras escorrem dos lábios
ensanguentadas.

A faca desce e se levanta
com o sangue da vida, jubilosa.
O meu poema tem todas as linhas da criação.
A loucura justifica o meu poema como
justifica a vida.

Vamos deixar a melancolia para outra hora.
Por enquanto a mulher não é uma estátua
de sal. O olhar foi punido porque o olhar
é tudo.
Por mais que aceitemos o esquecimento,
o olhar, que também é esquecimento, preserva.

O olhar diz que é a hora do silêncio.
Palavras, palavras, palavras
e o silêncio.
Como um pássaro, o silêncio canta.
Com a voz do esquecimento, o silêncio canta. 

J. C. M. Brandão




sábado, 17 de dezembro de 2011

CANTO DA PRIMAVERA





CANTO DA PRIMAVERA


É primavera na terra transverberada.
As palavras cantam como fontes infatigáveis.
Tudo move as palavras.
Um trator,
um pássaro,
uma estrada,
uma estrela.
O perfume dos jacintos paira no ar
e cai
com a luz do sol fertilizando o sangue.

As raízes elevam-se leves
com o ofício dos espinhos e a defesa dos marimbondos.

Ouço o martelo da primavera polindo as flores e as estrelas
e os esqueletos dos cavalos
dos poetas – os cavalos transverberados
na noite líquida.
A loucura me guia, com a sua imanência e a teia do êxtase.

O silêncio da candeia sobre a mesa, as grandes sombras
esvoaçantes
e uma gota
de óleo
no escuro.
A primavera explode, uma serpente se enleia
nos meus braços, na garganta. 

E eu canto.
Eu canto com a voz das coisas, que nunca se calam.
A rosa ilumina o sangue.
A pedra ilumina a rosa.
Os mortos iluminam a vida.
A primavera cresce na ponta dos dedos.
A primavera cresce na ponta da língua transverberada.

José Carlos Mendes Brandão




quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

PROCURA DA POESIA





PROCURA DA POESIA


Às vezes a palavra deixa a pele, como a cobra.
(Sob a pele das palavras, a poesia.)






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a Carlos Drummond de Andrade

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Poema, o cão





Poema

O nome do cachorro era Poema.
Morto o dono, chorara e uivara à lua
e às estrelas a sua dor ingente.
Morreria de dor, todos diziam.

Visitou a capela entre os pinheiros,
onde o dono elevava a alma a Deus,
e a biblioteca, o outro lugar sagrado,
e ante os dois, reverente, se prostrou.

Encontrou o menino na montanha,
contemplaram o abismo do universo
com suas maravilhas, e concluíram

que mais belo é o coração humano.
O menino seguiu o seu caminho
com o Poema ao lado para sempre.





domingo, 11 de dezembro de 2011

O Deus de Clarice Lispector





















                                                                               Clarice Lispector no Vesúvio em 1945


O DEUS DE CLARICE LISPECTOR


Há trinta anos morria Clarice Lispector, a escritora que abalou a literatura brasileira pela contundência de sua linguagem que tentava desvendar o mistério da existência com palavras claras e obscuras a um tempo, de grande beleza poética, de inquietação, de perturbação, espanto e maravilhamento. Com dezessete anos de idade escreveu “Perto do Coração Selvagem”, e era como se estivesse surgindo uma obra de gênio. Era como se valesse o adágio: “O gênio nasce feito.” Mas Clarice trabalha incansavelmente. A sua genialidade era uma busca contínua da palavra certa, que clarificasse os escaninhos obscuros do ser.
Comecei o meu conhecimento de Clarice com “A Paixão Segundo G. H.”: é o começo mais difícil, intrincado, um labirinto de luzes que se acendem umas sobre as outras e cegam o leitor. É muita claridade, e claridade entrando-se num mundo de trevas, alcançada com o estupor, com o nojo. É a epifania do ser diante do nojo, o ser se encontra, se descobre diante de outro ser, asqueroso, repulsivo, representado pela barata. Eu sou um mistério para mim mesma, dizia Clarice, e vivia desvendando os véus desse mistério, ofertando-nos a claridade que dele advinha. 
Foi no conto que Clarice mais se realizou, nessa arte da síntese que a levou e que ela levou ao âmago da problemática do homem, que se interroga, perplexo, à busca do que ele é em si. “Feliz Aniversário” é o melhor que ela criou, um triste retrato da solidão familiar, no tempo em que ainda havia grandes famílias, no entanto já mal estruturadas. Criou algumas peças notáveis, extraordinárias, mas vou hoje me deter sobre uma quase insignificante, de tão esquecida: “Perdoando Deus”. É bom lembrar esse encontro de Clarice com Deus, ela que, depois de tanto investigar o mistério, já penetrou no Mistério.
É a história de uma personagem que olhava distraída o mar e de repente se sente a mãe de Deus. Como o homem é o que ele escreve, vou dizer sem medo de errar que aquela personagem era Clarice. Quem se sentiu com o carinho de uma mãe pelo filho era Clarice. O interessante, o totalmente novo é que esse filho era Deus. Sabia que se ama a Deus com respeito, medo, solenidade. Mas o carinho maternal por Deus era absolutamente estranho. Assim como o carinho por um filho não o reduz, mas o alarga, diz, assim era maior o seu amor.
Foi quando quase pisou num rato morto. E entrou em pânico, controlando como podia o seu mais profundo grito. Desde o início do mundo sentia um pavor dos ratos, que a devoravam. E era como se Deus lhe lançasse na cara um rato. Ela amando-O com amor maternal, Ele insultando-a com brutalidade. Decidiu, então, vingar-se. Mas descobre que o rato é o mundo. Ela se julgava forte, porque, compreendendo, amava. Descobriu que se ama verdadeiramente somando as incompreensões, que amar não é fácil. É preciso amar primeiro a nossa própria natureza, depois o seu contrário, Deus.
Queremos amar a Deus só porque não nos amamos. É uma espécie de compensação. Conclui: “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.” Dizem que o homem inventou Deus porque não consegue explicar o universo. Clarice aprende que isso está errado. Como Santo Agostinho, descobre que devemos procurar Deus dentro de nós.
O grande católico Alceu Amoroso Lima diz, dela, que a presença invisível de Deus não se expressa pela invocação do seu Nome, mas que o silêncio pode ser o sinal mais seguro de sua realidade. E conta que Clarice ofereceu-lhe o seu último livro com uma dedicatória, escrita um mês antes de morrer, terminando sua demonstração de afeto com estas palavras claras e decisivas: “Eu sei que Deus existe.”


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Esta crônica foi escrita há quatro anos. Lembro-a aqui, como minha participação nas homenagens a Clarice Lispector.




sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Musa afinando duas liras


 
                                                                                                     

A musa afina duas liras:
uma para o desejo,
outra para o delírio.




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Musa afinando duas liras

Interior de taça ática de figuras vermelhas e fundo branco de Erétria.

Data: -470 / -460

Paris, Musée du Louvre

Créditos: Marie-Lan Nguyen, 2005




quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

RESÍDUO





RESÍDUO


Por trás de tudo fica um pouco de terror.
As rosas crescem com o terror nas pétalas.
Um campo de rosas cresce
em torno de minha casa: é o campo da morte.

Os pássaros cantam no meu campo de rosas,
alimentam-se das sementes da morte.
Olho uma rosa,
sinto o seu perfume, sinto a
rosa nos lábios –
e é sempre como se estivesse para morrer.

Penso que poderia acordar, mas
também penso que posso estar morto.
O sonho é um ensaio da morte
com um diretor
impertinente andando em volta do leito.

As luzes se acendem, o sol se acende, a vida
se ilumina.
É tanta a luz que os olhos sangram.
O tempo não perdoa.
A mó mói a farinha
das horas.
O relógio geme no poço.

Os espinhos da alucinação me despertam.
É primavera lá fora,
mas chove como um dilúvio.
O que é um dilúvio? Só de eu pensar
o dia se esboroa no seu mastro, anjos desmoronam
montanha abaixo, sem asas.
Bato pálpebras, bato pálpebras e voo.

               J. C. Brandão



sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A GALINHA MANCA





                              
                                   A GALINHA MANCA

A galinha atravessa vagarosamente o terreiro.
Cada passo é quase uma queda
(como a vida).

A galinha é torta,
tem uma perna mais curta que a outra.
É uma galinha manca.

Atravessa o terreiro compenetrada como se estivesse
calculando
cada
movimento.
O terreiro é largo,
clareado aqui e ali por algumas réstias de sol.
O chão é coberto de terra vermelha, uma ou outra pedra
preta,
folhas, penas e dor.

A galinha é um bicho só.
Procura algum grão de milho, uma minhoca,
procura a sombra,
procura o sol.

A galinha conjuga os verbos da solidão.
Nenhuma outra galinha,
nenhum galo.
A vida parece sem sentido.

A galinha ergue a cabeça,
apruma o corpo,
soluça
e volta a caminhar.

É preciso presto caminhar. A galinha olha para um lado,
para o outro,
olha fixo para um objetivo determinado, um ponto que só ela vê.
E caminha.

Sente falta de uma muleta, talvez de uma bengala.
Mas caminha
tropeçando na própria perna,
caindo,
levantando.
Caminha.
A galinha mínima dominou o seu mundo mínimo.








terça-feira, 29 de novembro de 2011

OS FUMOS DA CIDADE






























OS FUMOS DA CIDADE


      1
Trouxe para a cidade o perfume do mato
e o perfume das ostras e das gaivotas.
Viverão comigo até eu morrer.
 
2
Nas ruas da cidade,
sob o céu negro, estou em casa.

3
  As ruas fedem a urina, fezes, óleo e fuligem.
Sombras me cobrem. Eu me encolho no meu canto.
Não posso viver sem medo.
 
  4
  Não somos mais eternos.
Habitamos engradados de plástico, nosso mundo é virtual.
Enviamos sinais de nossa solidão ao universo inteiro.

5
Quebraremos as taças, esvaziaremos o vinho e a dor.
As casas – os prédios com seus fios invisíveis – cairão por terra.
Restará, nos cacos de vidro, na fuligem, somente a poesia.
 
6
Senhor, dai-nos paciência, dai-nos um pouco de orgulho.
Chafurdamos demais na lama. É o fim do mundo.
Senhor, dai-nos o êxtase de uma última chama.
 
7
A pátina do silêncio escorre das juntas da arte.




sábado, 26 de novembro de 2011

O POÇO DA CIDADE




O POÇO DA CIDADE

1
Mergulhou no poço da cidade,
mas não para se suicidar.
A lua e as estrelas o chamavam.

2
É natural que venha a velhice.
É natural que venha a morte.
Só não quero perder a minha loucura.

3
Precisei matar os dois homens.
Levei comigo a mulher.
Nova vida começava para nós.

4
Na casa velha havia um homem sem cabeça,
uma mulher com o ventre aberto
e três crianças em volta, mumificadas.
E pediram-me para não escrever sobre isso.

5
A sua pele negra era de uma beleza estonteante.
À noite descobri-lhe os cotos das asas de anjo.
Foi preciso matá-la.

6
Fui encarregado de exterminar os ovos.
Já imaginaram uma proliferação de anjos
nesta terra desolada?

7
Deus não é possível.
Os anjos não são possíveis.
Os homens estão entregues à própria sorte.

8
Não sei nada da minha vida ou da minha morte.
Carrego o silêncio de uma pedra na cabeça.

9
Querem que eu faça parte disto e daquilo.
Eu sou sozinho como os ossos de um crânio sobre uma pedra.
Eu sou uma sombra ao vento.

10
Fui um cavalo selvagem.
Fui uma rosa frágil, uma pedra, um rio.
Duvido que eu seja um homem.

11
Não reconheço a forma da minha cidade.
Estas pedras, estes ferros retorcidos, estes fios soltando fogo
e a fumaça saindo do ventre da terra à medida que as pessoas respiram.








quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O SILÊNCIO DAS COISAS





























O SILÊNCIO DAS COISAS

O silêncio dorme à sombra das árvores.
Os animais são obscuros como os homens.
O sol gira tanto, as estrelas giram, uma serpente
gira em torno do meu corpo.

A morte é real, concreta. A montanha é pesada.
É preciso falar do amor como uma coisa.
É preciso falar do amor.
As flores perfumam a terra, as flores iluminam a terra.
As flores enlouquecem.

Que pode uma criatura, entre criaturas, senão morrer?
É preciso partir. É preciso chegar ao fim da viagem.
Para onde vamos?
É preciso despedir-me. Vou sozinho.
Sou o abandono. A terra me espera.
Vivo com a terra no sangue. Um dia serei apenas terra.

A caverna me lembra a necessidade de ser e morrer.
A inocência dos filhotes caídos do ninho.
Os bois mugem, as estrelas mugem.
As estrelas sussurram distantes.
Sou inocente. Balbucio fracamente.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A GÊNESE DAS COISAS





GÊNESE DAS COISAS

No princípio era o nome. Eram as coisas.
O sangue tinge as coisas de luz.
Deus não permita que eu morra sozinho, sem as coisas.
Sou uma criatura com veneno nas unhas,
sou uma criatura com veneno na língua.

Vivo com uma alegria feroz a inocência das coisas.
Que fazer com o mundo?
A máquina das coisas gira nos eixos.
O vento faz música no bambual.
O vento faz música nos ossos.
O vento articula o nome das coisas.

São belas as coisas como gênese da terra.
A terra é iluminada com as flores nos chifres das vacas.
A terra é amor.  Deus é doce.
A criação sorri, os dentes das criaturas estralam.
Criar e morrer. Sou feliz como um louco quando crio.

Manipulo as coisas, com sangue nos dedos.
Eu me reconheço nos troncos das árvores.
A minha loucura explode as árvores.
As minhas mãos sangram com o peso das coisas.





segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CONHECIMENTO DAS COISAS































CONHECIMENTO DAS COISAS


Tenho o conhecimento da terra e do homem.
Os cavalos relincham.
Abro a porteira do dia. As vacas me esperam.
As últimas estrelas respingam no pasto.
O galo acende o sol. As coisas são violentas
em sua placidez.
As pedras respiram. Eu sou selvagem.

O que é a terra? O que são as coisas?
As palavras caem na palha do paiol.
Os coqueiros mugem, a estrada se ergue
com a poeira.
O ribeirão rebenta o açude.
Não quero a paz.

Sou feroz com a terra fora dos eixos.
O que podem dizer as palavras?
As coisas rilham os dentes.
As coisas são íntimas, fêmeas, sensuais.
As coisas não têm salvação.