quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O bezerro Bito




O bezerro Bito

Acaricio o focinho do bezerro
Bito, peludo e escuro, muitos anos
depois do adeus à infância e suas pastagens
de sonho e sol. Sou órfão de um bezerro.

O Bito ergue a cabeça e me olha triste
como se adivinhasse a dor futura.
O que seria feito de nós dois
no carrossel do tempo, que não para?

Morremos quando finda o sortilégio
que fazia o universo inteiro nosso.
Nunca mais o bezerro Bito berra

me chamando no pasto. Nunca mais
a lambida na cara como um beijo.
Nunca mais o menino e o seu bezerro.

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... Gregório Vaz apronta das suas: um extemporâneo poema de finados (ou de amor, se quiserem).

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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A bênção do sol




A bênção do sol

Tem um rio nos fundos da minha casa.
Quando chega lá, ele forma um lago.
Depois um segundo lago. Não quer ir embora.
As águas chegam e param para sempre.

Chega uma pata adernando as banhas
Com uma esquadra de patinhos atrás.
Nadam no lago para lá e para cá.
Chega o sol com uma libélula.

Depois chega uma borboleta amarela,
A pata fala Quá! e ela fica azul de susto.
Os patinhos dão risada, Quá, quá, quá!
A borboleta voa na direção do sol.

Os peixinhos põem as cabecinhas de fora,
Espiam o espetáculo do sol. Uma garça voa,
Os bezerros pastam o capim verde do dia
À beira do lago. A vida é uma bênção do sol.

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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O ninho - Sônia Brandão




Ninho

De tanto olhar o ninho
nos meus olhos
nasceram pássaros.

O poema Ninho, da Sônia, foi selecionado entre os dez finalistas do concurso TOC 140, da Fliporto.

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A escrita nas areias: árvores e estrelas




A pedra do mar

Era apenas uma pedra junto ao mar.

As ondas vêm e vão com as espumas,
e é como se trouxessem junto o sol
e os peixes com o sal e com as algas.

Partículas de estrelas brilham,
sobem como espíritos líquidos
no ar da tarde de cores e perfumes.

Era uma pedra junto ao mar, apenas.


A morte de branco

A menina ia de branco na praia.

Levava o sol e o mar nos olhos,
levava uma gaivota em cada mão.

Seus pés deixavam marcas na areia,
um pingo de sangue caía em cada pegada.

Uma mancha de sangue crescia no vestido
da menina que ia de branco na praia.

As gaivotas voaram das mãos da menina
com o sol e o mar nas asas brancas.

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Foto: Sônia Brandão. Árvores na areia monazítica da praia de Itaguá, em Ubatuba, SP.

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A poesia é memória




As limas

O pé de lima no fundo do quintal
está seco. É uma súbita lembrança.

Os espinhos secos e negros,
como um esqueleto. Mas as limas

viçosas. Entra ano, sai ano, as limas
viçosas. O pé de lima é um esqueleto

negro e seco, mas as limas viçosas
refulgem, solenes, na lembrança.


O poste

O poste abre os braços para tantos fios e cabos
que não acabam mais.

Abre os braços para receber o dia:
reflete a luz do sol como uma bênção.

Os pássaros pousam em seus punhos de metal
e cantam batendo as asas.

Quando a noite se estende no firmamento,
a lua e as estrelas beijam as suas mãos abertas.

Um homem sobe no poste e abre os braços
entre os fios e o céu, crucificado.

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O meu amigo Zé de Anchieta publica um poema meu de 2007 aqui...
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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A borboleta translúcida




A borboleta translúcida

A borboleta translúcida voa
De folha em folha, de pétala em pétala.
O sol brinca no cristal luminoso
De suas asas mágicas.

Os peixes dourados, no tanque d’água,
Deslizam silentes.
A flor branca pende a corola
Para a pedra impiedosa.

O verde da paisagem nunca é o mesmo,
Na cerca da luz vária do dia.
Um pintassilgo, delicadamente,
Pousa num galho da roseira.

As antenas da borboleta
Captam imagens perecíveis,
Indigitam o seu destino
No labirinto, sempre novo, da vida.

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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A pureza do afogado




O afogado

O mar trouxe o corpo à praia.
Era um estrangeiro, jovem e belo.
A boca aberta deixava ouvir,
como se viessem do outro mundo,

as vagas do mar e os gritos brancos das gaivotas.
Eu lhe fechei os olhos, azuis como o céu
através das órbitas de uma caveira.
A sua nudez lhe tornava a pele mais pálida.

Sorria perplexo, como se reconhecesse
num espelho
a nossa estranheza.

Olhando-o, nós sabíamos:
também temos, em vida, o céu nas órbitas
e a morte nas pálpebras.


Pureza

Um barco desliza no lago silente.
É o crepúsculo dos pássaros calmos
e a leve brisa na folhagem transparente.
Anjos inaudíveis cantam salmos,

demônios dormem no fundo abismo.
Hoje não verei a face do afogado.
Sou a nuvem suspensa de uma árvore
e cismo na quietude, cisne dourado.

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O primeiro poema é de 2005; o segundo, de 1985. Mais ou menos vinte anos os separam.

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"Quem escreve um poema salva um afogado." (Mário Quintana)

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Foto na Ponte Metálica, em Fortaleza.

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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Soneto menor




Soneto menor

Sou linguagem como um pássaro,
sou som e cor como uma árvore.
Amo o corpo da mulher,
os olhos e o seio e a vulva

e todo o ouro do crepúsculo
que traz na margem da alma.
Decifro o enigma do mundo
com uma chave de fogo

e uma serpente na mão.
Com o vinho do silêncio
modulo a eterna canção.

É uma pedra e uma flor,
é uma estrela e tem sangue,
no coração da paisagem.

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Veja As botas do Gregório Vaz aqui.

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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Soneto monossilábico e Réquiem para W. H. Auden




Soneto monossilábico


Meu

pai

cai

réu.


Céu,

sai,

ai,

que eu


quero

ver

Deus,


mero,

ter

réus.


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1965.


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Para não dizer que só falei de flores... – de plantas e bichos... Resolvi postar uns poemas diferentes. Como os três sonetos anteriores. E, para mostrar que faz tempo investigo a forma do soneto, este “Soneto monossilábico”.

E para não ficar tão monossilábico, um podcast do blog do meu amigo Wellington Leite. Um jurado do Mapa Cultural Paulista reclamava de, nas várias regiões do Estado que concorriam, não haver textos regionais. Mera falácia: a aldeia hoje é o mundo. E nesta aldeia global, posso ser um poeta ligado à terra – e ao mundo, do qual a terra faz parte (ou será o mundo que faz parte da Terra, agora com maiúscula?).

Se tiverem paciência, ouçam-me: http://conexaobrasilfm.blogspot.com/2010/09/primeira-postagem-de-podcast-jose.html

E, para quem, como eu, preferir ler:

Réquiem para W. H. Auden (1907-1973)

Parem as máquinas, parem todos os motores.
Queimem os livros, as enciclopédias, todas as cifras,
Todos os poemas, as palavras e as imagens,
Queimem o homem e a sua verdade implausível.

Morreu o poeta, o mundo não é o mesmo.
A memória do próprio tempo, das árvores e das águas
Desfaz-se ao contato humano, à vigília, ao clarão da aurora.
As paredes caem, os olhos explodem no labirinto.

O ouro da sombra desmorona, desmorona.
O azul do céu e o azul do mar são muito frágeis,
Não nos contaram que era tanta a solidão.

Parem as máquinas, chegamos ao esquecimento.
Queimem os poemas, as imagens continuam cegas e mudas,
Nós continuamos perplexos diante da porta sem fechadura.


O silêncio de Deus, 2009.

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terça-feira, 7 de setembro de 2010

O cachorro




O cachorro

O cachorro me olhou com o silêncio
lacrimejante das janelas-enigma,
sempre fechadas, sem palavras, sangue
e sal diluidor, e latiu forte

como a morte, como árvore de espantos.
O cachorro rompeu o seu silêncio
de pedra exausta: precisava a dor
dizer ao mundo. O sangue na terra

clamava aos céus, o breve fim, a angústia
milenar, consentida, mas angústia.
O cachorro floriu diante do mar,

em êxtase com a água, a eternidade
nos olhos mansos, vendo o tempo frágil
desfazer-se na fria areia efêmera.

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domingo, 5 de setembro de 2010

O cavalo




O cavalo

O cavalo sentou-se à minha mesa,
comemos e bebemos, conversamos
como velhos amigos que retornam
ao altar de antes, com os olhos rasos

de lágrimas e algum represado ódio.
O cavalo soltava fogo pelas
ventas, enquanto ria seu riso ácido.
Contou-me a história da partida antiga

com sangue e pus nos cascos quebradiços.
Fomos irmãos, pastamos nas pastagens
do mesmo senhor, nosso pai, ausente

e presente na dor e na alegria.
A angústia não tem fim, e retornamos
ao capim do universo que deixáramos.

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Poema detentor do 1º Prêmio “Cassiano Nunes” de Poesia, da Universidade de Brasília, junto a O cachorro e A gata (2º lugar, 2010).

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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A gata




A gata

A gata me olha com seus olhos náufragos.
Era como se seu olhar viesse
do outro mundo. Lançava com os olhos
um grito silencioso, que gelava.

Havia gigantescas ondas, monstros
marinhos, corais, conchas e florestas
submersas em seus olhos de âmbar e ouro
líquidos, mal velando o abismo fundo.

Neles boiava o sal da eternidade.
Deus neles mergulhara na criação.
A luz primeira Deus criou nos olhos

da gata imemorial. O seu miado
surdo traz ecos dos enigmas do homem
diante do absoluto mar da origem.

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Poema detentor do 1º Prêmio “Cassiano Nunes” de Poesia, da Universidade de Brasília, junto a O cachorro e O cavalo (2º lugar, 2010), que postarei aqui nos próximos dias.

A gata é a da foto – é uma gata que apareceu em casa faz tempo, nem parece que já está velhinha. Não escrevi “gata imemorial”? Ela é capaz de sugerir muito.

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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Escusa – um poema de Manuel Bandeira




Escusa

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade,
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o
[gás carbônico das salas de cinema.

Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.

Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
[das madrugadas

Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.

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Manuel Bandeira, in Belo Belo, Estrela da Vida inteira.

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