terça-feira, 30 de março de 2010

Êxtase


Êxtase


A pedra cai na água, o pássaro imóvel

no galho. A rosa, ao sol, se renova.

Os melros na relva, os melros dentro

de mim. Onde estão? Quem fui?


Caminho na tarde verde à beira

da água clara onde as nuvens se miram.

Atira a pedra na água e esquece.

O círculo cresce e desaparece.


Qual a forma do meu poema? Ainda

estou elaborando o nome da rosa.

Vozes verdes, verdes ventos. Elaboro


o meu poema como um cavalo ruminando.

O rio engole a palavra e espera o êxtase

da rosa ao se mirar em suas águas.


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segunda-feira, 29 de março de 2010

A maior tragédia do poeta




A maior tragédia do poeta

Disse Jean Cocteau que "para o poeta a maior tragédia é se o admiram porque não o entendem." Revi essa frase esses dias e comecei a refletir se meus últimos poemas (os que tenho mostrado, há outros que elaboro e reelaboro infinitamente e secretamente) são fruto dessa reflexão. A busca da simplicidade para não ser admirado, se o for, porque não me entendem. Comecei a escrever poemas complexos demais, para leitores iniciados. Considerava que a simplicidade era dificílima e só poderia ser atingida com muita experiência. Seria fruto da maturidade.
Mas me lembrei de que O Córrego tem uns doze ou quinze anos, Ele Era Nosso Pai tem mais de 15, Poente tem uns 20... Não foi agora que atingi essa maturidade, se é que consegui a façanha de ser entendido. Porque a questão não é tão simples. Um grande amigo reclamou: “Você escreve difícil, Zé.” Acontece que esse amigo não é leitor de poesia, aliás, não é leitor de coisa nenhuma. Penso que está respondida a questão: quem não é leitor de poesia, por mais que tenha boa vontade, por maior que seja a amizade, não entenderá o poema mais simples. E muitos, além de não serem leitores de poesia, não são leitores de nada – a esses é impossível esperar-se o milagre de entenderem um poema.
Por falar em entender um poema, tenho insistido nesse ponto há muitos anos: um poema não é para ser entendido. Mas fruído, degustado aos poucos, saboreado com prazer – aquele prazer que leva ao êxtase estético. Não é preciso se analisar a obra para se saber o que o autor quis dizer, não é preciso explicar pari passu as suas intenções aparentes e ocultas. Um poema não é uma obra de autoajuda para transmitir uma ideia banal ou profunda que possa ser lida como uma filosofia de vida. O poeta não transmite ideias, mas imagens. O poema não tem nenhum compromisso com a verdade, mas apenas com a beleza. Se é que tem algum objetivo, será o de encantar, extasiar.
As imagens do poema, inevitavelmente, farão bem ao leitor. Se gostou, se se emocionou, se sentiu que a realidade é bela, e a beleza é sempre um bem, e se sentiu que a realidade é mais do que a realidade, ou se apenas sentiu a realidade, o poema lhe fez bem. Mas, repito, não é preciso explicar essas imagens. Não sejamos tão magistrais. Afinal, repetindo-me ainda, explicar uma piada tira toda a graça da piada – quem precisa de explicação ri sempre sem graça, fica com cara de bobo.
Se é diminuir muito a poesia compará-la à piada, comparo-a então à mágica. A poesia tem o sortilégio da mágica. E sabemos que um mágico não ensina como realiza seus truques, seria tirar-lhes todo o encanto.
Desmontar o relógio ou a caixinha de música para saber como funciona tira-lhes toda a graça. A criança quebra o brinquedo para ver o que tem dentro e depois chora, não só porque está quebrado, mas porque sempre era melhor não saber.
Não prego a ignorância (ainda mais que já dei a entender que sou contra toda pregação). É preciso desenvolver no leitor o gosto estético. É preciso que o leitor tenha, antes, a capacidade linguística. João Cabral fez séries de poemas sobre o ovo, o relógio ou a cabra, matérias não-poéticas – estava ensinando-nos que poesia é antes de tudo uma questão de linguagem.
O poeta precisa dominar a linguagem para escrever (até para escrever errado). E o leitor precisa dominar a linguagem, não para entender um poema, mas para senti-lo. Sentir já é uma forma de entender.
Quando se fala em sentir, pensemos em sensações. O poema é uma forma, que posso manusear, ver, ouvir, cheirar, saborear. O poema é um objeto que deve tocar aos meus cinco sentidos, talvez a um sexto, a um sétimo... Estaríamos falando da imaginação, da perplexidade metafísica... Mas não é preciso complicar. Fiquemos nos cinco sentidos, que, pelo menos teoricamente, são bem fáceis de entender. Fiquemos no prazer de sentir as imagens do poema, é muito, pode ser tudo.
(Como no poema de Manoel de Barros: “Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia. / Eu não preciso de fazer razão.")

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Ao poeta Edson Bueno de Camargo, que andou em palpos de aranha por causa de certos não-leitores.



sábado, 27 de março de 2010

Crepúsculo





Crepúsculo

As pétalas de luz caídas na água,
Embriagadas com o vinho do crepúsculo.
A minha imagem sai do lago
Molhada de sombra doce.

Uma menina dorme e é uma rosa
E sonha as pétalas orvalhadas.
Um peixe olha de lado para o sol
E sorri com a prata das escamas.

Quebro gravetos secos com os pés,
Quebro o vidro da paisagem.
A árvore dança sorrindo

Com os pássaros no coração.
A lua se aproxima de mansinho
Fugindo do moinho do sol.

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quarta-feira, 24 de março de 2010

As águas do rio



As águas do rio

A rosa floresce.
Junto à fonte interminável
Abre as pétalas de luz.
Um bem-te-vi anuncia o arrebol.

Na harpa da palavra,
Com os dedos em chamas,
Vou tangendo o universo.
No meu olhar cai o orvalho da manhã.

Vejo a tua face na gota de orvalho.
A libélula se procura à beira d’água.
Ouve-se o som da sombra de uma folha.

O poeta vive à beira do abismo e do êxtase.
As águas do rio estão dentro dos meus olhos,
Nunca acabam de passar.

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segunda-feira, 22 de março de 2010

Claridade




Claridade

O hibisco vermelho apaixona-se pelo sol,
Abre-se mais, explode, parte-se.
As folhas verdes guardam a luz e a sombra.
A borboleta aprisiona a cor nas asas abertas.

A libélula equilibra-se no caniço.
O limo recobre a pedra por onde a água escorre,
A água cristalizada ao cair das pedras da cascata.
A garça caminha com leveza no capinzal.

O pica-pau martela o tronco do pinheiro.
O beija-flor carrega a luz nas asas em delírio.
A coruja vigia a sua toca com os olhos acesos.

As palmeiras espelham–se nas águas do rio.
O monjolo sobe e desce, a roda d’água cantarola.
O melro canta à beira d’água a claridade do verão.

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sexta-feira, 19 de março de 2010

O córrego




O córrego


Os brotos de bambu crescem rodeando a casa,
A água parada brinca com os girinos,
Giram no ar as jabuticabeiras pesadas,
As pedras sonham com a carne dos lagartos.

A cadela delira com o dia das maritacas,
O joão-de-barro palpita com a sua casa,
O arado levita nas asas do beija-flor,
A orquídea eleva a árvore acima do sol.

A vida clara estala na cacimba,
A borboleta adora a terra vermelha
E as flores semeadas no canteiro.

Meu canto engorda na ponta dos dedos,
As laranjeiras adernam no quintal.
No córrego a beleza nua e límpida.

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Ao Vasqs, que gostaria de ter escrito um outro poema, O Orvalho da Amora, que falava do córrego da infância, escrito no mês passado, enquanto este é do século passado, dever ter uns doze anos,
também à Claudinha, que não pode lembrar que eu nasci em Dois Córregos sem rir, e nem sabe que minha cidade tem três córregos, nasceu na confluência do córrego Fundo com o Lajeado, que se unem para formar o do Peixe, que vira rio, cresce, torna-se o Rio Jaú, que vai dar nome à cidade vizinha.
Carlos Reichenbach fez um filme chamado Dois Córregos, mas sem querer engana o incauto que vê uns córregos enormes, o rio Jacaré e o rio Tietê, que também banham o município de Dois Córregos.
Quando meu casei, fui morar na beira de um córrego, as vacas e as éguas de noite vinham se coçar nas paredes da casa, ou poderia ser uma anta, havia antas e capivaras por ali.
Mas o córrego da minha infância é bem longe dali, no pedaço de mato onde eu nasci, lugar que um dia foi tão grande que chamaram de Matão, e o córrego corria nos fundos de casa, não tão perto quanto o poema faz supor, havia antes uma imensidão de pés de jabuticaba, nunca vi tantos juntos depois, havia muitos outros pés de fruta, havia o mangueirão dos porcos, havia pássaros e outros bichos e havia encantos muito mais que o poems faz supor.
Ninguém acredita, mas eu nasci no paraíso.

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quarta-feira, 17 de março de 2010

A origem do poeta




Ele era nosso pai

Ele contava histórias e ele plantava árvores.
Um dia viu uma cobra à beira do caminho,
Aninhou-a no peito, dormiu com ela,
Acordou irmão das árvores e dos bichos.

Desceu ao fundo do rio atrás de uma concha,
Voltou com nove filhos e uma mulher nos olhos.
Dizem que somos frutos de uma ou nove árvores,
Somos peixes das águas, que a dor humaniza.

Nosso pai dominava os cavalos selvagens,
Conversava de longe, acariciava as crinas.
Dizem que relinchamos alto na alvorada.

Nosso pai conhecia a voz da terra e do sol.
Tinha uma cobra no peito quando cavalgava
Tocando o berrante com um som de água verde.

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segunda-feira, 15 de março de 2010

O orvalho da amora




O orvalho da amora

Os dias caem no córrego da infância,
O tempo gordo, de sal e sol,
Com os bezerros e os cachorros.
A bananeira exibe o coração enorme,

As jabuticabeiras carregadas
Forram o chão de folhas leves.
Os pés afundam no barro vermelho,
Os olhos mergulham no orvalho da amora.

Ouço ao longe o monjolo e sua sombra,
O vento balança as nuvens brancas,
As espigas rebentam no milharal.

Abro os pulmões para o ar da manhã,
O cavalo relincha na porta da cozinha,
O galo canta por todos os galos.

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sexta-feira, 12 de março de 2010

Quietude




Quietude

A casa quieta, à beira do lago, acorda com os pássaros.
Há domingos tão belos que até os cachimbos florescem.
Os meus olhos e os figos maduros estouram ao sol.
A água fresca dos cântaros reluz à sombra sossegada.

O poeta escreve com estrelas, pedras e pássaros.
A montanha brilha no caminho do pinheiro além-horizonte.
O pássaro desenha o círculo perfeito no céu azul.
A pomba passeia na terra do canteiro de buganvílias.

Escrever é um testemunho da alegria.
A mulher ergue a mão para a macieira em chamas.
As árvores solícitas esperam a passagem do rio.

A figueira abre os braços e oferece a sombra acolhedora.
Nadam na água os peixes dourados e a imagem das árvores.
O melro canta, imóvel. O rio deflui, banha as folhagens do dia.

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quarta-feira, 10 de março de 2010

O sangue e a terra




O sangue e a terra

O barco no campo entre as vacas,
Os bezerros e os cavalos.
A luz era tanta
Que giravam os cavalos.

O barco flutuava,
O brilho da tarde degolava.
A mulher de pedra pairava
Na luz da terra vermelha.

A borboleta amarela
Media a distância infinita.
Pendiam de sede os caules da tarde.

Os marimbondos bailavam como loucos
Ou apaixonados.
Fiquei cego com tanta cor.

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segunda-feira, 8 de março de 2010

Corpo e figo




Corpo e figo

Seu corpo imita um figo
Estourando de maduro.
No azul dos olhos, refletido,
O azul de um sanhaço.

O orvalho da manhã
Ainda líquida na pele
E os lábios de maçã,
Os seios que explodem

De carne rubra e cristal.
Palavras são pouco,
Nenhum repouso.

A boca saliva
E sangra. Antecipa,
No desejo, a mordida.
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Foto: Evandroc - Flickr

sábado, 6 de março de 2010

Sinfonia




Sinfonia

As tartaruguinhas nadam
Com as cabecinhas de fora,
O lírio caído no lago
Sonha um idílio no jardim.

O cisne flutua
Entre as árvores no espelho d’ água,
O cisne valsa
No cálice do lago,

Um ninho valsa
Com a música da brisa.
Um raiozinho quase se afoga

No tanque da rãzinha.
O pica-pau no alto do coqueiro
Martela a sua sinfonia inacabada.

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terça-feira, 2 de março de 2010

Alba



Alba

Gira a roda d’água,
O monjolo pila o milho,
Um galo bica a manhã.
Escorre a farinha do ouro do sol.

A dor das ameixas abre-se à luz.
Entre as folhas da cerejeira,
O canto do pássaro inventa o pássaro.
Saboreio a amora roxa.

Os meninos e as abelhas
Sonham o mel das pitangueiras vermelhas.
Dos cajus dourados nos galhos do cajueiro,

Pingo a pingo, o sol.
Bebe de meus lábios,
Na clara luz da manhã, o êxtase do olhar.