quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O timoneiro




O TIMONEIRO


Sou um velho com uma pedra sobre a cabeça.

A pedra é a palavra, eu digo.

A pedra remove montanhas.


O escuro verga as árvores.

O vento contra as portas fechadas.

Os fantasmas tecelões.

O choro dos fantasmas tecelões sob as portas fechadas.


Qual a saída do labirinto, Senhor?

Os corredores escuros, as tábuas gastas do assoalho,

as ranhuras

e os vãos entre as tábuas, os gemidos no porão.

As chaves foram devoradas pelas aranhas

sob o assoalho.

As aranhas devoram a memória,

a fome, a angústia, o azul indevassável.


É tarde para a paixão?

A pedra pesa sobre a minha cabeça.

As minhas mãos se partem com o medo.

O melro asfixiado.

Os lampiões apagados.

A árvore murcha.

O gavião salta, agarra-me a jugular.


Dispo o meu corpo de aluguel.

Os demônios me esperam.

Digam aos demônios que não irei,

pertenço a Deus.


Ajoelho-me diante da beleza.

Prostro-me por terra diante da beleza.

A beleza é Deus.


Sufoco de delírios.

Lírios brancos se inclinam à minha passagem.

A aranha tece a teia.

A minha face presa no bordado.

Mas eu tenho a beleza.


A gaivota contra a pedra.

A pedra pesa contra a minha cabeça.

Mas eu tenho a beleza.


O mar é o abismo e a beleza.

Eu navego, timoneiro do abismo.

São meus o abismo e a beleza.

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P. S. - Estou em viagem. Retorno dia 4/11/10.

sábado, 23 de outubro de 2010

Elegia do fogo



ELEGIA DO FOGO


Com a tocha na mão, saio da caverna

a face gelada como a pedra, o limo a escorrer da face

com o silêncio.


A montanha vai desabar, não restará pedra sobre pedra

nenhuma árvore, vegetação nenhuma

e a água vai se transformar em pedra, em pó

e deslizar sob as ruínas.


Um sino ainda toca, ressoa surdo nas galerias

entre os dentes das pedras.

Ó taciturno, eu digo, a face pálida contra as tochas.


Um gavião grita com o fogo na língua.

Ah, se eu soubesse a verdade.

Ah, se eu soubesse quem me segue encapuzado.

Nunca estou sozinho, sempre o gavião me segue

e o outro, o encapuzado.


Passeio por entre velhos túmulos

ossos despontando na terra revirada

e uma única cruz, enterrada pela metade

um galo sentado num dos braços cantando

cantando desesperado

cantando como se estivesse para morrer.


Tenho a chave na mão

aperto com força a chave na mão até sangrar

mas não encontro a porta.

O barco está longe

o pântano afunda sob meus pés.

Terei deixado os papéis em ordem? Poderei partir?

sem prejuízo, sem agonia, sem multiplicar a morte?


Meu cavalo está morto.

Meu cão está morto.

Minha mão está morta, quase seca.

O fogo me queima os cabelos, os olhos, a língua.

Devo partir?

É chegada a hora?

O mar enlouqueceu

o céu enlouqueceu.

As chamas unem as nuvens e as ondas.

Rodopiam

rodopiam.

É tarde? É a hora? Os gonzos da porta rangem.

E eu que não encontro nenhuma porta.


O galo canta, escorre sangue da garganta

mas canta.


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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A pedra e o canto



A pedra e o canto


Eu me sentei numa pedra à sombra do cipreste.

Pensei: Esta pedra existiu sempre aqui?

O cipreste um dia nasceu. Não como uma estrela,

de súbito, um brilho no escuro. O cipreste veio


de outro cipreste, que veio de outro, de outro,

numa história que vai até à semente inaugural.

Mas a pedra! A pedra é a memória: existe antes

de que se pense em pedra ou terra. E continua.


Como o pássaro que canta sobre a minha cabeça:

o canto permanece no espaço. Como a pedra,

perene. Vôo no eterno. As asas imóveis,


e a garganta, única. A pedra sabe e conta.

É um pássaro pousado na terra, que é canto

antes de ser pássaro, e pássaro, antes de pedra.


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terça-feira, 19 de outubro de 2010

A forma da rosa





A forma da rosa


Deus guia a minha mão

Deus guia as minhas palavras

Deus guia as minhas asas.


Vôo na cúpula do templo com as barbas brancas ao vento

cantando as litanias do esquecimento.


Deus estuda os meus ossos

Deus estuda os meus ossos pálidos.

Eu estudo a beleza antiga e nova de Deus nos meus ossos pálidos.


Você orava ante os meus ossos

você celebrava a memória e celebrava o esquecimento

ante os meus ossos.


Fui banido da vida.

Comendo a areia do deserto, comendo o pó dos ossos

sou profeta do vento

e das serpentes aflitas.

Deus é a minha voz calada, a minha língua decepada.


Deus é a rosa sobre os ossos.


Somos herdeiros do trono – feito de ossos

mas sobre os ossos está uma rosa

e a rosa é Deus.


Os séculos caem do relógio com estrondo.

A rosa foi exilada do jardim.


Os olhos cegos concebem a face única.

Ouçam o pássaro

ouçam o tempo

ouçam o vento da palavra.


Ouçam o verbo da rosa.


No deserto, na montanha, na ilha

a rosa como um pássaro canta sobre a pedra.


A borda do poço ainda guarda as marcas dos meus dedos.

A água guarda a minha face.

Os meus olhos cegos passeiam no escuro.


O mar vem dar à praia.

O mar vai se distanciando, até o alto-mar, até o eterno.

O mar leva a rosa até o eterno.


A rosa é a forma do eterno.


Sentado numa pedra

sentado na pedra do tempo

sou o profeta do vento.


Sou o oleiro moldando na argila

o esquecimento.


(2007)
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domingo, 17 de outubro de 2010

O circo de cavalinhos



Os cavalos loucos

Os cavalos loucos cavalgam na lua.
São cavalos cegos e tocam música
e cantam versos verdes e vermelhos
e cantam com um peixe na garganta.

Os cavalos loucos comem na minha mão,
comem milho e ouro cantando baixinho.
São cavalos felizes e riem de mansinho
e gargalham com a chuva e com as árvores.

Um dia pegou fogo nos cavalos loucos,
o carrossel girava, girava em chamas.
Sobrou apenas a alma dos cavalos loucos,

sobraram os olhos dos cavalos queimados.
Os olhos doíam e choravam lágrimas de fogo,
os olhos de fogo eram a alma dos cavalos loucos.

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A Ignácio de Loyola Brandão

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Ignácio de Loyola Brandão esteve em Bauru há uns dois anos e contou a história do circo de cavalinhos do seu avô, que eu recrei à minha maneira neste poema.

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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Homenagem aos professores




DOCÊNCIA


Não sei se viste,

Mas o sol desta manhã era maior que o mundo,

E maior também que o nosso coração turbado.


Ainda ontem um pássaro

Pousou sobre os galhos que sombreiam o rio,

E seu canto amarelo apaziguou

A agonia da tarde.

Mas nada vimos:

Nossos olhos e nossos corações

Se ocupavam e se multiplicavam pelas lousas

E cadernos.


Nada temos além das nossas vozes

E as horas debruçadas sobre escritos, mapas e cálculos

- Viagens que nunca fizemos,

Mas que nos sustentam

E habitam os abismos que infestam

Nossa alma carregada de esperanças.


Não sei se enumeraste dias ou noites,

Se armazenaste as dores

De ensinamentos apaixonados,

Se imaginaste canções

Para cada momento de alegria ou desespero,

Ou o motivo pelo qual

Te ausentas de casa para edificar pessoas

E nações.


De muitas coisas não sei.


A vida segue sem nos darmos conta,

E o que nos sobra

-este sol maravilhoso e insano-

Insiste em iluminar-nos o caminho

E a esperança,

Como se merecêssemos, apesar de tudo,

Começar mais um dia.


Eis o edifício, e as salas

E os que nos esperam sedentos, com olhos de fogo,

Pelo que há em nós

Pelo que somos

E pelo que construiremos diariamente

Com nossas vidas abnegadas

E permanentemente apontadas

Para o futuro.


Benilson Toniolo


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O autor foi meu aluno, há já uns 30 anos, na belíssima E. E. Escolástica Rosa, à beira mar plantada, em Santos, SP. Fez esse poema, que lhe agradeço, emocionado, em homenagem aos seus professores.


Quem quiser conhecer mais do Benilson pode ver o seu Blog do Benilson.


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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Os gestos humanos






Os gestos humanos


Os caminhos são simples e pequenos, Sônia,
Levam à árvore em chamas do crepúsculo,
Aos cisnes sagrados brilhando no lago verde.

Você se lembra dos gansos, como grasnavam
Alertando-nos? As torres balouçavam-se
Com os bambuais, sobre a cidade adormecida.

Um relâmpago e as flores todas se abriram.
Ungimos com óleo e mel as nossas feridas,
Estávamos prontos para a arena da vida.

Os touros arrastavam o carro do sol e o mundo.
Nós conhecíamos as palavras apunhaladas,
Nós tínhamos sobre os ombros um lírio e uma forca.

Nós velávamos a pérola do enigma em sua concha
Enquanto os caranguejos e as aranhas, no escuro,
Extasiados, copiavam os nossos gestos humanos.


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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O menino no jardim




O menino no jardim

A lagarta contorna os espinhos
E devora a folha verde da roseira.
O menino sorri em silêncio
Com o cachorro sentado aos pés.

Uma minhoca se espreguiça ao sol.
A borboleta azul me acompanha.
Caem as pétalas das rosas, fica
O perfume no ar. O menino grita

Com o braço queimado pela taturana.
Cantam os pintassilgos no jardim.
O menino abre a mão cheia de amoras,
Escorre dos dedos o sangue vermelho.

A luz cai na relva, mistura-se à sombra
E cria a cor. A abelha leva o ouro.
A formiga morta no cimento frio,
Entre as folhas secas, ainda é poesia.

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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Os tico-ticos




Os tico-ticos

Os tico-ticos banham-se na areia.
Sinto cheiro de terra nos cabelos.
Uma andorinha entra no meu quarto.
Uma abelha se esconde atrás do espelho.

Os tico-ticos bicam o espantalho.
A pedra da montanha solitária
Tem apenas o sol por companhia.
Ainda se ouve a água do rio seco.

As flores-de-São-João no cafeeiro.
A casa abandonada sofre ao sol.
O vento sopra sobre os cogumelos.
O cachorro descansa entre as ruínas.

O chorão pende os ramos sobre o lixo.
Os periquitos fazem algazarra.
A gata brinca com a aranha morta.
O burro espanta as moscas com o rabo.

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Quando eu era criança, os tico-ticos faziam algazarra no quintal de casa. Depois, sumiram. Passei muitos anos sem ver nenhum tico-tico, passarinho sem graça mesmo – mas como fazia falta. Fui reencontrá-los, despreocupados, fazendo festa, em Minas Gerais. Este da foto está em Poços de Caldas, ao pé da Pedra Balão.
Ali estavam também a andorinha, a abelha atrás do espelho, o rio seco, o espantalho, os cafeeiros entre as pedras, cobertos de flores-de-são-joão, o cachorro dorminhoco, os cogumelos, o lixo, o chorão, a gata, a aranha morta, o burro com suas moscas. Estava ali, completo, pedindo para ser escrito, este pequeno poema triste e feliz.

Ah, era o dia e hora da derrota do Brasil na Copa...
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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

No meio do caminho




No meio do caminho

No meio do caminho as sombras dançam,
Entre os raios de sol e as poças d’água.
Um passarinho pousa aqui e ali
E bica a própria imagem na água suja.

Uma rosa caída numa pedra
Quase sangra, ao sol, de tão vermelha.
O voo leve de uma borboleta,
De flor em flor, de uma a outra rosa.

Um gafanhoto bate na vidraça
E cai em agonia na calçada.
Alvoroçadas as abelhas zunem
Em volta da cachopa, no portal.

No meio do caminho dança o sol
Refletido em cada poça d’água.
Uma cadela vem beber nas poças,
Com a água e o sol, o dia como imagem.

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Dialogo com um dos poemas mais lembrados de Drummond, “No meio do caminho” (que dialoga com Dante) e um dos menos lembrados (mas dos melhores) de Bandeira, “A realidade e a imagem”.
Harold Bloom cunhou a expressão “a angústia da influência” lembrando o fantasma que persegue tantos escritores tão ciosos de sua “originalidade”. Eu fico com aqueles que se extasiam com o prazer da influência – ou com o diálogo.
Deixo aqui o poema de Bandeira para a observação direta do meu processo criativo, de que me orgulho.

A realidade e a imagem

O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam
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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Fim de dia




Fim de dia

A menina, antes de cortar as rosas,
Hesita um pouco. O aroma a envolve toda.
Depois recolhe as pétalas caídas
Pelo chão, entre as pedras do caminho.

Sob as paineiras nuas, as painas brancas
Bailam no ar como borboletas loucas.
O vento leva as nuvens para o sol.
Um sino tange, longe, entre as chamas.

Garças douradas valsam neste incêndio.
As rosas fulgem na roseira brava.
Os canaviais farfalham, a fumaça
Sobe alto, em espirais. A cana estrala.

A terra se ilumina, as labaredas
Como línguas de sangue. Dói, sufoca.
A menina flutua com as rosas,
Com o aroma suave. Fim de dia.

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sábado, 2 de outubro de 2010

O carneiro




O carneiro

Nos olhos do carneiro, a eternidade.
Como uma nuvem na retina azul,
os olhos fundos escondendo o medo.
O mercúrio da morte na lã branca.

Sob a copa de espinhos da paineira,
o carneiro reflete o azul do céu
nos olhos e caminha para a morte.
Empalidecem os lírios com o sol,

delira o lago, as águas se iluminam.
Quem me trará de volta a infância azul
do carneiro? O balido na manhã

da dor ainda repercute em mim.
Vem um silêncio róseo, um baque súbito,
e o eterno suave morre com o carneiro.

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