sábado, 30 de janeiro de 2010

O fim do mundo




O fim do mundo

O coração queimava na trincheira,
era um pedaço de carvão pulsando,
em agonia, entre a fumaça e o sangue.
Os meus olhos vazados na fuligem.

Os ratos nos buracos da parede
ansiavam, gemiam de prazer.
Um verme sufocava nos meus lábios,
as palavras quebradas entre os dentes.

Eu carregava um peixe sobre os ombros.
Um poema se faz com o mistério
da âncora entre os despojos do naufrágio.

O trator do fim do mundo segue arando,
as lâminas levantam da terra esqueletos
de anjos e de oráculos destronados.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Poema de aniversário




Continuo a olhar no horizonte a terra que toca o céu,
a linha mínima compondo
no encontro de verde e azul
uma pele exata,
bela e eterna, conquanto frágil.

Cavalos se erguem no ar
brotando de uma fonte rubra,
a fogueira do sol
na paina das nuvens a jorrar:
luz deste exílio breve
como areia
a se perder na distância.

As folhas caem com as árvores
sobre a terra sem uso.
Os frutos e os pássaros da infância
ficaram sepultos
no escuro do tempo,
com vagas inscrições na parede.

O que fica de quem fui,
o ser antigo diluído em nova forma,
os cães do menino latindo
no calcanhar do velho,
que exibe as cãs formosas na beira da estrada.

No solo fica a cinza,
um muro por cima coberto de hera.
Uma flor nasce numa reentrância,
entre duas pedras,
embora seja noite e tudo,
a montanha e as águas,
se cale.

Deus pasce do alto.
A ovelha bale fora do aprisco
e volta.
O mundo é grande
e calmo cristal
onde brilha a face de Deus.

28 de janeiro de 2007.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A noite do emparedado



As estrelas ecoam no fundo do lago.
Um anjo dorme num pequeno barco.
O gavião grita de seu nicho no rochedo.
É tarde. A árvore estremece.
A raposa geme acuada à beira do banhado.
O perigo espreita, orvalhado.
A morte é suave, é uma criança rósea.

O menino agoniza sob a palha
com a bênção brilhando na fronte.
O sino dobra na montanha.
As casas de pedra recolhem as águas da aurora.
É a noite do emparedado.
Conheço os caminhos da névoa.
Estou pisando as cinzas do silêncio.

Uma chaga floresce no meu peito.

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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Geofagia - no Haiti como aqui


Biscoitos de barro temperado com manteiga ou banha, água e sal, vendidos na rua, no Haiti. Foto de 2007. A natureza não é culpada da miséria, que não tem pátria.

Inda meninos, íamos com febre
comer juntos o barro dessa encosta.
Será talvez por isso que o homem goze
ser a seu modo tão visionário e ébrio.

E inda goste de ter em si a terra
com seu talude estanque e sua rosa,
e esse incesto contínuo, e infância anosa,
e céu chorando as vísceras que o cevam.

Tudo isso é um abril desenterrado
e ilha de se comer, ontem e agora,
e vontade contínua de cavá-los,

cavá-los com a maleita renovada.
Ó terra que a si própria se devora!
Ó pulsos galopantes, ó cavalos!

Jorge de Lima, Invenção de Orfeu, 1952.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Poética essencial



Escrevo para descobrir o verbo essencial.
Eu quero o verbo essencial.
A rosa,
as pétalas em chamas,
a rosa das trevas,
o cálice de néctar e sangue,
a essência da rosa.
Escrevo para entrar em êxtase.
Escrevo para ver Deus.

Quero escrever um poema tão mal feito
que só Deus para consertar.
Um poema tão sem sentido
que só Deus para me dar a chave.
Um poema do abismo
que só Deus para me salvar.
Um poema que me anule,
absolutamente.
Na folha branca,
na pedra fria,
só o absoluto de Deus.

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O Silêncio de Deus, 2009

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A Federico García Lorca




Dos telhados da tarde flui a chuva.
Os talos de penumbra nas veredas,
a paisagem se queda cinza e sonho.
Sobre os ramos de pássaros tristonhos,

uma chaga se grava na folhagem.
Suspiram múrmuros tremores acres.
As espigas desabam com estrondo
de granizos de estrelas que soluçam.

Eleva-se da terra névoa aflita,
ânsia de flores turvas pelas águas.
Do húmus se liquefaz um negro sumo,

cravos na face e luto nos cabelos.
Olhares delirantes suam trevas.
E minha voz desliza, além da imagem.

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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Cristal




Estátua, estou só
no parque, no tempo.

Que forças, terríveis,
me açoitam?

Que forma componho
do sangue dos mitos?

(Miragem, resisto
à fala da serpente.

Pombos voam no céu azul,
não me pousam no peito frio.

O real passa por mim
como uma nuvem.)

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domingo, 17 de janeiro de 2010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Depois do terremoto no Haiti




É o fim do mundo, grita a haitiana.

A terra tremeu,
o fogo queimou,
as casas caíram.

Vítimas sangram no meio da rua.

Um soterrado pede ajuda,
uma mão sai de uma parede,
uma cabeça sobre uma pedra.

Corpos, corpos, corpos.

Ainda está balançando,
eu não posso ficar neste lugar,
preciso de ajuda.

Gritos, gritos.

Zilda Arns morreu numa igreja.
Um menino olha para o céu.

Deus não vê a dor dos homens,
eu sofro, eu cego Deus.

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A púrpura vária




Eu me perdi nas dunas do poente,
ouro selado no caminho das lágrimas.

Que palavra o desígnio vence?
A noite é o limite do mistério.

Uma pálpebra tímida me escuta,
inútil o exercício da procura.

As vagas se detêm na praia cinza,
a aranha tece o véu de orvalho e nácar.

No labirinto da linguagem cega,
eu velo a flor do abismo.

Estou perdido, além das evidências.

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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A Cecília Meireles




A BAILARINA

Escala íntima, prece entretecida
reflexo alado e cântico delido
a bailarina arremetida vela
o corpo-ritmo pluma que se anela.

É fábula cativa nas retinas
em equilíbrio lírico feridas,
é uma estrela livre sobre o dia,
intacto raio verde-gris contido,

e pássaro de prata cristalina,
librada em árvores de seda breve.
Tranqüila ceifa as asas como pétalas

e cai espelho concha de água e seta.
Fina imagem de flor que se enleva,
fantasia de brisa e luz reflete.

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Alberto da Costa e Silva lembrou bem: Cecília Meireles é bem pouco lembrada. Por quê?

Ele próprio, Alberto da Costa e Silva, é bem pouco lembrado. É um dos dois ou três maiores poetas brasileiros vivos (embora poesia não seja corrida de alcance, como lembrava Mário Quintana), mas quase ninguém o reconhece.

Cecília é um dos poucos nomes realmente grandes da nossa poesia, mas sofre quase um ostracismo. Não é demasiado ousada? Mas é preciso uma obra ser ousada? O que é essencial numa obra? Aliás, falar em essencial é falar em Cecília Meireles. Tenho dito.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A Manoel de Barros





O ENCANTADOR DE CABRAS

Vinha na poeira da estrada, aceitava um prato de comida,
talvez algum serviço.
Era encantador de cabras. Tocava a flauta,
cabras sisudas roçavam o pasto para ele.

Sufocaram as rãs, enroladinhas no peito
para não morrerem de frio; o peito ainda coaxa.
Tinha a cabeça virada para trás,
mode guardar as lembranças.

Gania no fundo do poço, a água jorrava.
A vida tem muitas mágicas, como um ovo.
Santo de todas as rezas, benze sobre o estrume verde
e floresce a muleta entrevada.

Vira e mexe se transforma num diabinho de chifres furados,
oito brincos dependurados.
Simples a vida, milagre de água
de mina bebida na guampa – dizia, encantado.

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Poeta grande é aquele que não precisa de explicação.
Minha homenagem ao enorme poeta Manoel de Barros.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Página de diário



Abri a janela e vi um avião,
a tarde estava azul
no céu, mas
verde no morro, nas árvores, no pasto, nos bois.
A terra é vermelha,
branca em Bauru, dizem,
mas é verde quando meus olhos estão pastando
e vermelha quando meus pés pisam,
se afundam,
navegam entre os pés de café, as jabuticabeiras e a beira
dos córregos verdes da infância.

Olho o avião e me vejo plantado na paisagem,
no galope do cavalo,
uma fruta na boca, outra na mão
e respingando terra úmida
– de calças curtas –
nas ruas por onde ando.

Trago na carne os perfumes da vida
que vivi, sonhei, pisei, escarrei
– a minha vida cuspida e escarrada na palma da mão
eu vos ofereço, ó príncipes, meus irmãos.

Não sou todo mundo
nem ninguém, sou
a razão da minha emoção
ao sol e à chuva,
nudez, equilíbrio, brilho do orvalho
na corola da flor ou na bosta das vacas.
A minha poesia tem a pureza de uma laranja
brilhando no alto da laranjeira
ou apodrecendo no prato esquecido no alto do armário.

Um peso na balança
na noite, no centro
do dia, o poema é um fruto sempre maduro
que apodrece, se esquecido
no alto do que for.
Eu sou a voz que fica no poema
mesmo se apodrecido,
voz perene.

Dentro
do poema, o coração
com a sua régua e esquadro. Que bela
a vida de cada dia
retalhada como a carne no açougue
– tão vulgar!
e tão doce,
tão alma.

Tenho a presença de Deus no fundo dos olhos
dormindo,
pisca-piscando como um vaga-lume
ou brilhando tanto que, por isso, não se vê.

Sou pobre
como um cisco,
a galinha no quintal,
o cachorro roendo um osso,
o mendigo como um anjo atravessado no caminho
e sou rico
como a água, o pássaro, o jumento
porque tenho a poesia na ponta da língua
e às vezes sei disso.

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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

600 cruzes





As crianças carregam suas cruzes
Proclamando a verdade nua e crua:
“O lugar de criança não é a rua.”
São seiscentos meninos carregando,

Às costas, cada um a sua cruz
Lembrando a todos os desocupados
Que o lugar de criança não é a rua,
Lembrando que nós somos os culpados

De as crianças não terem pai nem mãe,
De viverem catando lixo podre,
De disputarem com os urubus

A carniça da vida, as imundícies
Que o rico desbundado joga ao pobre.
Voltaremos ao pó nós todos nus.

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Escrevi este poema em abril de 2009, quando vi a mais bela manifestação de minha vida.
Em Fortaleza, praia do Meireles, Volta da Jurema, 600 meninos carregando cruzes, denunciando o abandono das crianças de rua.
Mostro somente agora o poema, como uma forma de participar da denúncia desse grave problema humano.

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sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Ressaca



Som de bronze nenhum, o tédio tange.
No mármore e no sangue a aderência.
Mas nós que somos filhos da carência,
que oculta flor de fogo nos responde?

O besouro do olvido nos confrange.
Por que condutos fluem as ondas, onde?
A alameda febril consome a angústia
com o seu ímpeto. Nós, os insolventes,

quem somos? O ar nos modela a forma vã,
e contemplá-la é flauta. Vagas? Entoamos
o cântico do mito constelado, dementes

e mansamente lúcidos na escura e chã
(bruma, nudez) medida que geramos.
Quem somos nos exaure em ouro e astúcia.

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