segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Gleba



Noite imóvel, enigmática:
muralha errática:
de olvido.

Por breve momento:
o tempo não era o tempo:
de tão antigo.

Templo de pedra noturna:
o universo em cinza ondula:
tépida gleba.

Azul? escrínio? alfange?
o mundo é ocre, terra
e sangue.


.............


Um lábio secular em noturna
vigília: inflexível resíduo?
rosa suspensa.

O suspiro lento giro
da ausência: nítida a
palavra: exata e inarticulada.

Pálido segredo: labirinto
de evidências: a flor lavra
cristal e azul.

sábado, 28 de novembro de 2009

Ritual




7

A água beija a pedra,
a pedra beija a água.
O desejo verde
nos lábios da alma.


6

A minha perspectiva é a vida
traçada com rigor de arte e sangue.
Manejo cores e formas plásticas
no espaço: meu projeto didático.


2

Alimento o meu coração
com o leite das rosas rubras.
São tochas brilhando na noite,
são asas ligeiras e me levam.


5

Estou no fundo do poço,
sem nenhuma saída.
Mas as estrelas brilham
na água doce.


1

Ó meu Deus, quanto tempo vamos
aguentar a nossa crucifixão?
O cálice está esgotado,
já bebemos toda a dor do mundo.


4

Um corvo morto sobre a mesa.
As luzes apagadas.
Uma sombra esvoaça.
Um melro canta a palavra do ritual.


3

Este é um lugar quase sagrado.
Descubram a cabeça em reverência,
fechem as bocas, escutem em silêncio
a voz dos mortos debaixo da terra.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Thoreau e Manoel de Barros




“Já conhecemos a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil. Dizem por lá que conhecimento é poder e coisas desse gênero. Eu penso que precisamos também de uma Sociedade para a difusão da Ignorância Útil, o que podemos chamar de Conhecimento Belo, um conhecimento útil num sentido mais elevado: pois o que vem a ser maior parte de nossa decantada e apregoada sabedoria senão a presunção de conhecer alguma coisa, presunção essa que nos priva da vantagem da autêntica ignorância? Frequentemente o que consideramos conhecimento é nossa ignorância positiva, sendo a ignorância o nosso conhecimento negativo. Depois de longos anos de trabalho e leitura de jornais – o que são as estantes da ciência senão arquivos de jornais? – um homem acumula uma miríade de fatos, empilha-os na memória; depois, quando em alguma primavera de sua vida resolve vagabundear até os Grandes Campos do Pensamento, ele por assim dizer cai de quatro e pasta na grama como um cavalo, deixando no estábulo todos os arreios. Gostaria de dizer, às vezes, para a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil: caiam de quatro e pastem na grama. Há tempo demais vocês estão comendo feno. A primavera chegou e trouxe o verde às vegetações. As próprias vacas buscam as pastagens mais retiradas ainda antes do fim de maio; mas já ouvi falar de um fazendeiro desnaturado que mantinha sua vaca presa no celeiro o ano inteiro alimentando-a com feno. É assim que muitas vezes a Sociedade para o Conhecimento Útil trata seu gado.”
A ignorância às vezes é não apenas útil, mas linda; a chamada sabedoria é frequentemente pior do que inútil, além de horrorosa.”

H. D. Thoreau – Desobedecendo – Círculo do Livro – São Paulo, s/d.

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Não costumo postar textos alheios, trabalhando para a Difusão do Conhecimento Útil, afinal, mas não aguentei quando li Thoreau com o sabor verde das coisas de Manoel de Barros. Achei o máximo, é fabuloso o parentesco destes dois poetas e gênios.

No parágrafo anterior Thoreau diz: “Os espanhóis (lembremos que Thoreau é poeta e não cientista, tem compromisso com a beleza e não com a verdade) possuem uma ótima expressão para indicar esse conhecimento selvagem e sombrio: gramática parda...” Um dos belíssimos títulos de Manoel de Barros é Gramática Expositiva do Chão, nome-irmão da gramática parda de Thoreau.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Nightmare




Desaba sobre mim, ó infinito.

Terror êxul: espelho e labirinto,
as árdegas estrelas e a esfinge.

A potranca da noite me devora,
quem me sonha adormece em minha cova.


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Mais um pouco do meu processo criativo.
Este poema tem uns 35 anos. Eu tinha lido em Borges umas duas vezes que “nightmare”, pesadelo, era a égua da noite. A imagem é fantástica, o nome em inglês é pura metáfora. Por que Borges não fizera um poema sobre ele, apenas citara o fato da imagem nos radicais? Na terceira vez que li a citação, fiz o poema. O nome em si vale um poema. Mas aqui fica o que, com ele, desabou em mim.

sábado, 21 de novembro de 2009

Poema da necessidade




Os meus olhos de homem são cegos, a minha língua é seca. Preciso um sinal de Deus.
Estou cansado de apalpar o escuro e destilar palavras de pó.

Sou um homem, não domino as categorias do divino.
O meu sentido do êxtase é o pão nosso de cada dia.

As solas dos meus sapatos estão gastas,
Eu não me canso de andar, sempre para mais além:
A beira do abismo não é própria do homem.

A mesa posta, o pão e o vinho, a palavra e a luz
São tudo de que preciso para celebrar a vida.
Caminho entre as rosas, sob a chuva das estrelas,

Abraço a minha mulher e o meu filho,
O espírito nos une sob o mesmo teto.
Mas sou um homem e preciso ver a face de Deus.

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A Carroça do Caos é de 2007.
Poema da Necessidade (sim, o título lembra Drummond), antes chamado simplesmente Um Homem, é de um ano depois. Como eu andara lendo Milosz, achei até que copiara ou tomara de empréstimo a ideia. Relendo, não a achei em Milosz. Estava na Carroça do Caos - plagiara a mim mesmo, com o trabalho apenas de suavizar a linguagem. Ofereço aqui aos leitores como amostra do meu processo criativo, com muito de inconsciente.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A carroça do caos




Estou cansado de puxar a carroça do caos.
Estou esmigalhado sob a mó do tempo que não para, não para.
Sou escravo dos meus cinco sentidos e gemo e suo sangue.
Cego e surdo e castrado, quero ouvir a voz de Deus.

Eu fui castrado do meu sentido essencial: o êxtase.
Eu fui castrado da contemplação do divino e agonizo.
Eu navego no mar de veneno da minha vida,
Eu estrangulo os lírios do campo e os pássaros do céu.

Estou nu como uma pedra, como um sabugo apodrecendo.
Acalento a desgraça no peito como uma serpente, um abutre:
A serpente me leva o coração,

O abutre me devora o fígado, os olhos, a língua.
Amei com um ódio vil a minha condição de réprobo.
A vida me foge, sapateio no palco, a multidão aplaude.

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Foto: Contemplação de Ouro Preto, 2007.
Poema de O Silêncio de Deus, 2009.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Aleijadinho 18-11-1814+



Deixei os pedaços da minha carne nas ladeiras de Ouro Preto.
Entre as pedras do calvário das ladeiras de Ouro Preto
Deixei os pedaços da minha carne e dos meus ossos.
Mutilado pelo divino, esculpo a forma do divino.

O meu coração é de pedra e rói como o ódio.
Eu trabalho o corpo de Deus, eu, o sem-corpo.
A pedra me obedece com uma fé cega.
Deixei um pedaço do meu nariz na pedra cega.

O cinzel amarrado no coto da minha mão
Faz saltar lágrimas e sangue da pedra muda.
A minha fronte, face e beiço estão grudados na pedra.

Talho a imagem de Deus à minha imagem.
A pedra sabe e fala sob o meu cinzel.
Do fundo do meu horror, olho para o céu – petrificado.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

A história de Ruth e O cavalo de pedra




168.

Ruth, a moabita, descobriu os pés de Booz
e deitou-se a seu lado sob a tenda vermelha.
O trigal agitou-se com o brilho das estrelas.
Quando ela se levantou, era Ruth, a judia.


163.

A figura na cerâmica, azul, oval,
mergulha no cristal do espelho, nua,
alma plástica, sílfide parada no ar.
Concreta, Deus mais aérea não a quis.


164.

O punhal feroz, em silêncio, agudo
à espera da carne, sua, em ânsia nua.
O espaço entre a vida e a morte, frio,
na lâmina expectante, mas tão irreal.


169.

Ouçam as gaivotas! Ouçam as gaivotas!
As ondas do mar quebram-se na praia.
Em meu canto a quilômetros de distância,
quase posso tocar a brancura das espumas!


165.

Penso na morte como quem pensa na vida.
O meu limite é sempre mais além, no eterno.
A música da morte leva-me ao princípio
do silêncio de Deus, antes da criação.


167.

Trazemos as flores da loucura nos olhos.
As harpias da guerra ceifam a esperança
e a areia escura do deserto nos derruba.
Sem voz, cantamos nos círculos do caos.


166.

O diamante é puro como uma alma.
Eu me consumo no deserto escuro,
do silêncio o absoluto ser assumo:
me perco e mais perto de Deus estou.



201

O cavalo de pedra na paisagem,
o sol de outubro, o inclemente sol.
Pasto de verde e pedra irmanados
como duas verdades da beleza.

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Dois dedos de memória. Faz uns 40 anos planejei escrever um romance do Livro de Ruth. Não há muita matéria para um romance? Thomas Mann escreveu a história de José em vários volumes. É a questão de ser ou não romancista.

E não estou com pretensão nenhuma de realizar esta ou aquela obra. Escrevo ao acaso, compondo os poemas que me veem à cabeça. É uma forma de adestrar a mão e a cabeça - aliás, de não perder a mão e a cabeça.

Esses dias pensei na história de Ruth como um poema. Como sou poeta, foi fácil. Seria um poema de 14 versos mais ou menos. Como estou trabalhando com a síntese, coluna dorsal da poesia, fiz o poema em dois versos. Acrescentei os dois do meio porque estou trabalhando com quadras - o que não o melhora, mas encorpa, torna-o (talvez) mais poema.

O cavalo de pedra é uma brincadeira, desde quando o fotografei. Sem muita pretensão, o poema tem uma ou duas verdades da poesia.

domingo, 15 de novembro de 2009

Dois dedos de prosa



ESSÊNCIA

A rosa essencial, entre o tempo e a eternidade. O resto é silêncio.


A RELVA

Cresce a relva sobre a sua boca, cresce a relva.


AMO O MISTÉRIO

Amo o mistério porque não sou eu, não são os outros, nem as coisas, mas tudo que está além de mim, de minhas limitações humanas.


A NOSSA VINCULAÇÃO

A nossa vinculação com a terra, de onde viemos, as nossas raízes. Ficar deitado na terra, recebendo a força, toda a energia da terra.


ERA A ÁRVORE

Era a árvore frondosa, ou a trepadeira que se estende sempre mais além.
Era a água, seu poder transformador, o rio da vida.
Era o barquinho fazendo água, o remador pobre, levando o barco e sendo levado por ele, pelas águas.


O QUE SINTO

O que sinto, se o escrevo, são palavras.
Todos os sentimentos do mundo, ou se perdem, ou, se são registrados, para não se perderem, são palavras, que se perdem, porque não são nada.


AS MANGAS

As mangas contra o céu azul. O vermelho das mangas, o verde das folhas, e o azul do céu. Sentimento de saciedade e de infinito. A beleza das frutas e o infinito além do azul me saciam. Não preciso pensar em Deus como não preciso pensar nas mangas.


A MULHER E O GIRASSOL

Qual mais belo? São belezas diferentes, por que temos que nos metermos em comparações? A beleza da mulher está mais do que nos olhos, no instante em que foi apreendida. Na apreensão desse instante. Mas a beleza do girassol também está na apreensão do instante. Não serão uma só beleza? Como olhá-los ao mesmo tempo? Impossível, mas necessário olhá-los ao mesmo tempo. Na linha limítrofe desse olhar, está a beleza.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O muro de Berlim, vinte anos depois

Foto: Flickr - Márcio Nel Cimatti

Berlim, 89-09-11

O homem olha por uma fenda no muro;
os olhos não estão muito abertos, mas veem.
O homem sabe como é a vida do outro lado:
as ideias e os passos vigiados, dia e noite.

O sorriso contido, e o cenho, duro, franzido.
O futuro se esconde sob a névoa cinza;
está muito distante, talvez não exista.
Talvez o homem, nervoso, não saiba sorrir.

Tem a cabeça estrangulada no vão do muro;
um ferro do concreto asfixia-lhe a garganta.
O muro é cinza, todo muro do mundo é cinza;

mas tem um quê de permanência e resiste;
como uma idéia, não quer ruir, desabar.
Como os homens, o muro rui contra a vontade.

Do lado de cá, duas pessoas passam.
Passam, sob os seus grossos capotes,
a cabeça enterrada nos gorros de lã.
Vejo uma parte da cabeça, do gorro,

de uma pessoa; de outra, meio corpo,
a bolsa de mulher a tiracolo, cinzenta.
Não se distingue nem o sexo das pessoas.
São anônimos, passageiros, estrangeiros:

a história é feita de anônimos, como nós.
Nós, que olhamos, somos anônimos.
Não haveria apenas umas três pessoas

diante do muro, mas uma multidão;
estranhos, não se reconhecem; passam.
O muro tira a face e o nome das pessoas.

Uma face na fenda do muro, sem dono:
pertence à história, como a letra cortada;
deve ser R, mas bem pode ser um K,
um K de Kafka, um K absurdo, anônimo.

A letra é uma incógnita: K ou R?
Seria um R da RDA democrática?
Alguma coisa significa esse R ou K?
O muro é signo; a letra, letra morta.

Alguma coisa significa? A face absurda?
Perdi o nome; sou uma incógnita no tempo.
Não sou a multidão em pé diante do muro,

nem as pessoas escondidas, sob feridas,
no anonimato da história, sob o muro
que rui e fica, muro absurdo, só muro.

Bauru, 09-09-11

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Cristo de Baependi


Baependi
Upload feito originalmente por Haroldo Kennedy


O Cristo de Baependi

O rio do tempo ainda e sempre corre
e suas águas lavam a memória
e as fábulas sonhadas. Tudo morre.
Pouco mais resta que uma velha história:

“A verdade de cada dia jorre
e junte na madeira a chaga e a glória.
A dor que Deus não vê e não socorre
seja gravada em síntese corpórea.”

E enquanto o esquecimento dilatado
as coisas de cruzada cinza tece,
em Baependi o Cristo permanece.

As ondas do destino levantado
a arte barroca anônima velando.
À sombra das montanhas serenando.

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Este poema tem 33 anos. Na minha viagem de núpcias, em julho, passei por várias cidades do sul de Minas, entre elas Baependi. Foi quando conheci essa história e escrevi um soneto tentando recriá-la. Não gostei do resultado e nunca o publiquei. Mas uma obra de arte, como se diz, nunca é de se jogar fora.

Pensando em mostrá-lo aos amigos, procurei na internet uma imagem do Cristo da história. Nenhuma referência ao Cristo que me foi apresentado com fervor. Agora só se fala na Nhá Chica, que talvez, segundo dizem e esperam, se torne a primeira santa brasileira. Encontrei uma imagem do Cristo, sem nenhuma explicação.

Lembro-me da escultura como dolorosamente bela. Na época, escrevi a seguinte apresentação do poema. Vejo que agora é mais do que necessária. O motivo e matéria que glosei, mal ou bem, evaporou-se. Interessante: perdendo-se na história, o meu poema tornou-se histórico.

“Baependi é uma das cidades mineiras sem nenhuma fama, nenhuma produção de vulto, conhecida apenas por seu Cristo e a lenda que o envolve: um fazendeiro, curado o filho doente, fez construir, por um desconhecido que se isolou em uma cabana, um Cristo em tamanho natural, cravejado de pedras preciosas, com expressão de sofrimento intenso e, dizem todos que tiveram a desdita de as olharem naqueles tempos, há bem mais de duzentos anos, com as feições do moço curado, que teve a sua cura bem paga.”

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sábado, 7 de novembro de 2009

O Silêncio de Deus – para download




Caros amigos,

Lembram-se do meu poeminha Antipregão? “Não faço um poema / para vender na feira.” Pouca poesia, mas lembra um fato importante: a arte não tem preço. Por isso, pouco depois de lançar a edição impressa de meu livro O Silêncio de Deus, estou lhes oferecendo o arquivo para download. É só clicar na capa do livro logo ao lado neste blog.

Quem quiser, depois, poderá clicar na capa logo abaixo para adquirir o livro impresso. Muita gente considera que é outra coisa o objeto-livro, que é preciso tocar com as mãos, sentir o peso, até mesmo cheirar o livro. Mas é bom, primeiro, conhecer o material: não vou comprando qualquer coisa, minha casa já está atulhada de livros. Então, façam o download – são uns segundos apenas.

O Silêncio de Deus é muito importante para mim. Em 1999, tive um livro premiado com esse nome. Nesses dez anos, tenho organizado mais de dez livros com esse mesmo nome e poemas diferentes (cheguei também a reunir novos poemas com novos nomes, quase pensando tratar-se do primitivo O Silêncio de Deus). Borges dizia que publicava um livro para se livrar das inevitáveis alterações – embora acabasse fazendo alterações nos textos, mesmo depois de publicados. Prometo não fazer alterações nos poemas de O Silêncio de Deus nos próximos dez anos (embora promessas sejam feitas porque existe a possibilidade de não cumpri-las).

A Árvore e a Cruz é o primeiro poema do livro – foi publicado em jornal em 1978. Estrangeiros, Monte Branco e Pureza são anteriores. Escuna é ainda mais antigo, do tempo de O Emparedado (1975). Desses que me lembro no momento. Quero dizer que O Silêncio de Deus contém os melhores poemas que escrevi e não publiquei em livro – e sobreviveram ao tempo, esse juiz implacável.

Há alguns poemas novos – ninguém é perfeito. Isto é, apesar da minha imperfeição humana, acredito ter bastante experiência para não ter escolhido mal esses poemas.

Continuo fiel a meus temas iniciais – a beleza e o efêmero, a ânsia de permanência e a precariedade de tudo, o estranhamento, a busca de uma identidade essencial. Temas universais, afinal de contas.

Como sempre digo, não sou nada original – e também é fato que não existem idéias novas – mas as imagens podem ser novas: dependem do olhar de quem as vê e o olhar de cada homem é único. Esse único torna múltiplas as imagens. E justifica o fato de se escrever poesia ainda.

Saboreiem da minha mesa, meus irmãos.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O emparedado



Eu sempre calado
entre estranhos dobres.
Eis-me limitado
por estanho e cobre.
Eis-me emparedado
no meu quarto pobre.
Ainda mais me calo,
por mais que me dobres.
Sempre o mesmo avaro,
por mais que me cobres.

Parco de palavras
e outros marcos úteis.
Nessas minhas lavras,
sempre mais inúteis.
Memórias escravas,
minhas cobras fúteis.
Meus anjos de lavas,
trevas, barros súteis.
Eis-me em lande escassa:
longe, as formas dúcteis.

Esse o meu destino.
Moldar a estrutura
de encruados mitos.
Na pedra mais dura
forjar um estilo
de vaga ventura.
Nesta arte prossigo,
hera de ternura.
Neste brando rito,
palavra mais pura.

Do quarto as paredes
a pele do corpo.
Isolam as sedes
deste vário horto,
lançadas as redes
onde tudo é morto.
Onde eram as lendas
é um olho torto.
Por que se desvendem
as vozes do orco.

E o que era talvez
um menino antigo
finda-se de vez.
Desse mito findo
o muro de pez
e íntimo granito.
Dessa viuvez
no verbo falido.

– Um poema não lês,
não se lê o olvido.

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Tempo de memória. Não mudei muito: penso que este poema já velho (in O Emparedado, Companhia Editora Americana, Rio, 1975) ainda me define.

A foto é da Sônia.
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