quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Perfil



Falo esta minha fala de palavras
noturnas, onde me revelo inteiro.
Sou o que sou, e escrevo do que posso.
De minha face, que se fecha em si,

em dor que anseia pelo exato ritmo
que a transfigure, de evasiva imagem
a seu edificado espaço vivo.
Os resíduos do sonho ou da memória,

os labirintos do destino avaro,
o domínio do efêmero presente
no pensamento sábio, e ignorando,

as cinzas ilusórias, o que, alheio,
nosso julgamos. Vou mostrando, aos poucos,
os ângulos de minha face frágil.

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Desejo um ano novo com muita paz, sabedoria, beleza a todos os amigos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Construção

















Escolho as pedras do poema frágil.
Quero compô-lo com perícia tal:
Sua noite ordenada, na palavra
À palavra ajustada, com rigor.
Edifício de música e mistério,
A fábula criada se contempla
Voltada para dentro de si mesma.
Conceito circunspecto no declive
Da paixão, em sigilo resguardada.
Muralhas rubras guardam a garganta,
Correntes se erguem contra as cordas pobres.
Minha voz se contrai em seus limites.
Eu componho a forma, alta, concentrada.

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sábado, 26 de dezembro de 2009

O múrice e a rosa




Do múrice purpúreo à rosa negra:
as luzes do crepúsculo submersas,
a beleza perdida nas areias.

Por correntes sombrias sou levado,
pelos mares da noite, sob os sonhos.
Sou escravo de aranhas dementadas.

A morte intima o pulso latejante,
quem sou é uma voz e o sobressalto.
O silêncio me explica. Contra o céu.

Ultrapassei o umbral, as vagas dunas.
O amor salva, mergulho restituído.
Mas onde a seiva das estrelas dúbias?

Vivo o limite imposto, concha e pétala.
Não me encontro no espelho, em que me escondo.
Sou o múrice e a rosa, água velada.

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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Natal em Bagdá



A bomba desenha uma cruz em Bagdá
A estrela explode antes de nascer
A mulher rasga com as unhas o ventre ressequido
Dois olhos vazios me olham de lugar nenhum.

As árvores estão despidas como esqueletos
A rosa não tem mais nenhuma pétala
A raposa e outros bichos tristes choram no deserto
O universo é um cogumelo gotejando.

Profeta sobrevivente do exílio
Já não tenho voz e canto à beira da estrada.
Todas as crianças têm a garganta cortada

O sangue das crianças colore a aurora.
Um menino queima sobre a palha
Das suas cinzas o novo homem vai renascer.

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domingo, 20 de dezembro de 2009

Altura




No horizonte, onde cessa o sol,
a luz, branca e lívida, extingue-se
e se azula de verde e frio
a paisagem alta do céu.

Somente o céu é tudo, no alto,
como se abolindo, remoto,
e vejo, confuso, o reflexo
dele, nulo, num lago em mim,

lago recluso entre rochedos
hirtos, calado, olhar de morto,
em que, esquecida, se contempla
a altura, sem angústia, absorta.

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sábado, 19 de dezembro de 2009

Nitidez



Vejo nítido o céu ao sol,
azul esverdeado e cinza branco.
Sobre os montes da outra margem
paira uma névoa cor-de-rosa.

Visão que se extingue de súbito,
num intervalo entre dois nadas.
Asa no alto, entre céu e mágoa,
veio prolixo e machucado.

Esqueço, como uma saudade
que todo mundo tem por tudo,
e me invade um ópio da noite
num êxtase alheio de nada.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Livro do Desassossego



LUSCO-FUSCO

O que é isto que escrevo? Para quê?
Quem sou? Que imagem crio no poema?
Sou uma sombra na caverna alheia?
Faço a barba na minha face ou de outrem?


LIVRO DO DESASSOSSEGO

A concha sobre o livro sossegada
carrega vida alheia primitiva.
O poeta fechado em si mesmo
carrega a vida alheia de uma concha.


A POMBA FERIDA

Ferida pelas garras do gavião,
a pomba pulsa e sangra em agonia.
Depois do último voo angustiado,
vem, serena, morrer num só soluço.


O MACACO

O macaco na jaula tem cócegas
ou são minhas caretas no espelho?
Sou um bicho vestido de consciência
de macaco na jaula com cócegas.


PENUMBRA

Caminho na penumbra, entre destroços.
Vivo no lusco-fusco da consciência:
não conheço o ângulo do meu desejo,
não sei quem sou ou quem suponho ser.


A EMILY DICKINSON

Faça a cama com cuidado,
uma cama larga e macia
que acolha o nosso sono
até o Juízo Final.

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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Com o arame farpado na língua




1.

Com o arame farpado na língua
não me calo.
O sangue é a minha voz.
A minha língua sangrenta sobe ao céu.


2.

Com a faca da poesia na mão
escrevo na carne o meu poema.
Sei que um dia morrerei, mas deixo
a semente do meu grito plantada na terra.


3.

Contemplo o mundo do alto da montanha.
Os homens são formigas entre ruínas,
a cidade é um cigarro apagado.
Repouso entre as nuvens e as pedras duras.


4.

Primeiro ouvimos o toque de silêncio.
Depois caminhamos pelo pátio desolado.
Um de nós havia morrido afogado
e era como se cada um de nós fosse o morto.


5.

Não fui nem nunca serei barro a ser moldado.
Eu próprio moldei minha forma de homem.
Ordeno: pare, chuva; pare, sol.
Enfim, me atiro da muralha e morro.


6.

Na pedra a lição de poesia.
O mistério das coisas, nítida escrita
nas ranhuras leves ou fundas da pedra.
Olho a pedra como a um espelho.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Poema de Natal



E o anjo do Senhor anunciou a Maria
E ela concebeu do Espírito Santo.
Dois mil anos se passaram
E ainda se ouvem as trombetas da alegria.
A estrela brilha no alto da montanha
E ilumina o universo de esperança.

A terra inteira festeja o Mistério.
O primeiro milagre de Jesus
Não foi mudar a água no vinho em Caná,
Mas tornar-se homem no ventre de Maria.
Sem deixar de ser Deus,
Jesus se esvaziou da divindade,
Ganhou carne e alma humana para a Redenção.

O homem não se salvaria
Se o Salvador não nascesse de Maria.
Os pastores e os reis adoraram o Menino
Envolto em panos e deitado na palha,
Deitado no leito de madeira como a cruz do Amor.

Maria é a nova Eva,
com a maçã na mão e a serpente aos pés,
Jesus é o novo Adão
Da aliança eterna, sempre nova.
O pão e o vinho são a carne e o sangue
Da ação de graças de toda a Criação.

E tudo começou na estrebaria,
O Menino nascendo de Maria.
Cantamos a primeira igreja: Jesus, Maria e José.
Na sagrada família de Nazaré
O amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Retrato




Viver cada dia
como se fosse o último,
isso eu quereria,
e a face tranquila
de algum sábio antigo.

Dizer “carpe diem”
e colher os pomos
dourados do dia,
porque do amanhã
ninguém mesmo sabe.

Os dias se vão,
mas eu permaneço
sob o sol e a chuva,
contemplando a vida
em casa ou na estrada.

Falo do infinito
para além do umbral,
muito além da porta,
num copo de vinho,
no corpo da noite.

O dia nascia
azul, com o sol
e com tantos pássaros.
Tudo no lugar
das coisas da vida.

Tomo a noite escura,
o deserto e a areia,
a pedra e a montanha,
me perco de mim,
mas encontro Deus.

Se parece absurdo
morrer algum dia,
mais parece absurdo
viver para sempre
nos dias da vida.

Mas de onde viemos
e para onde vamos?
Afinal, quem somos?
A poeira cósmica
da ideia de Deus?

A poesia cósmica
criada por Deus
contemplo extasiado,
e me entrego à paz
da beleza antiga.

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Uma leitura do livro Retrato, de Marly de Oliveira.

A foto da Sônia lembra que o retrato também é meu.

(e entro em "férias" por uma semana...)

domingo, 6 de dezembro de 2009

O Pequeno Príncipe




No mosaico da vida
a obra de arte contida.
O meu espelho inteiro,
de onde, para subir,

desço. No vão da escada,
a minha alma converte
o universo num grão
de areia, sal, feijão.

De onde viemos, de onde
vem o pequeno príncipe
que somos, num abrupto
susto? A escrita do acaso?

Deus me perdoe, mas quem
me fez nada, ninguém?
O filtro das palavras
não me livra das larvas.

Não se diz o indizível
fardo falho, mas íntegro.

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Uma leitura do poema O Pequeno Príncipe, de Marcelo Novaes,
http://olugarqueimporta.blogspot.com/2009/01/parecer.html

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O sol me queima as penas




O sol me queima as penas
e o corpo frágil.
Sonho sem asas
e canto a minha morte.

A minha ausência na espuma,
na sombra apunhalada.
A paisagem leve das aves
e o sangue no altar da distância.

As árvores na tarde fria,
erguem os seus ramos vazios
lembrando-nos o nosso nada:
despidos para o azul de Deus.

Por acaso olhei para fora,
por acaso nos encontramos
à luz pura do dia largo
com uma pergunta nos lábios.

Neste exílio em que vivo,
nesta ilha de palavras,
encontro a minha face
no espelho redivivo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A névoa




Deixa a névoa suspensa
de teus olhos, imensa.

Deixa a névoa cobrir
miragens do possível.

A paz é flor distante,
é pedra dissolvida.

Toda memória apaga-se,
resta a névoa do olvido.

E teu relógio talha
os minutos sofridos.

O real da paisagem
perdida sob a névoa.

Há sombrias imagens.
E tudo o mais é treva.