domingo, 31 de maio de 2009

Poesia mínima



VAN GOGH

Por que o corvo
nesse amarelo-ouro
me rouba a alma?


A COR

A luz cai na relva,
mistura-se à sombra
e cria a cor.


EMILY DICKINSON

O retrato antigo
na parede da casa
não envelhece.


TEIA

A mosca pousa
na teia de aranha.
Busca a dor.


A LAGARTIXA

A lagartixa deixa
a sombra na parede
fria como ela.


A CADEIRA

A cadeira navega
no assoalho escuro
como num mar.


AQUÁRIO

Peixes nadam no aquário
dos seus olhos parados
na morte.


A SEREIA

O piano de cauda
é como uma sereia
fora do mar.


O CUCO

Cuco! Canta o cuco
de madeira e metal
– com uma tristeza infinita.


IDÍLIO

A cinza das cartas
no fundo da gaveta
entre as baratas.


O BALDE

O balde de borco
brilha no escuro
entre as panelas velhas.


O RELÓGIO

O relógio parado
ainda marca o tempo
na casa abandonada.


DELÍRIO

No linho dos lençóis
o lírio delira.


POESIA MÍNIMA

Quero a poesia mínima
das ranhuras de uma pétala seca
entre as páginas de um livro.


AINDA

A formiga morta
no cimento frio
ainda é poesia.

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quinta-feira, 28 de maio de 2009

Tempo Pascal



UNIDADE


O teu olhar me atravessou de lado a lado.
Dos meus olhos vazados, do meu peito
Saíram água e sangue e a luz mais pura –
A luz dos meus olhos vazados inundou o mundo.

Os homens céticos, as velhas, as mulheres,
Todos os desesperados do mundo se afogam
Na minha luz, na minha líquida iluminação –
E os anjos batem as asas brancas no céu azul.

Eu quero a plenitude da palavra amor.
Eu quero a plenitude do Ágape.
Deus me sustenta na sua mão absoluta.

As árvores cantam a música na lira do vento.
As tempestades levam as penas dos pássaros
E dos homens para a unidade de Deus.



TEMPO PASCAL


Espero a ressurreição dos mortos.
É tão simples a vida do homem puro
Que espera a segunda vinda do Senhor
Como quem espera o trem na estação.

O fogo dança nos lampiões, volta-se para o alto,
Os cadáveres das crianças sorriem beatíficos,
As flores crescem dos túmulos para o sol,
Os pássaros revoam com o delírio da luz.

O meu pai segue com o arado abrindo a terra,
A minha mãe cultiva as dálias da manhã
Nas fazendas de Deus, nos jardins do eterno.

Atravessei os areais do deserto na noite,
Mastiguei as pedras da aranha da angústia.
Espero a ressurreição como quem espera a chuva.


ANIVERSÁRIO

Hoje meu pai faz anos
dormindo sua morte,
mas não para sempre.

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Foto: Sônia Brandão

terça-feira, 26 de maio de 2009

Migalhas



A MESA

Sobre a mesa rústica
pratos e copos de barro.
E o pão repartido.


LEVEZA

É azul a água do sono.
Meu corpo leve paira
sobre as nuvens brancas.


A ARGILA

A argila da morte
coroa-me de vida
a vida.



O COPO

O copo de bruços
sobre a mesa vazia.
Brilha o nada dentro.


INFINITUDE

Beber-te
não mata a minha sede.


ESMOLA

Que me dás, ó infeliz,
que eu não te tenha dado?



O PESCADOR

Leva o pescador
um peixe maior do que ele,
menor que sua dor.


OS PASSOS

Quem percorre o caminho?
Uma borboleta?
Os passos de ninguém?


LAGO

A lua mergulha
na água do lago.
Ou a rã?



A LAVADEIRA

Passarinho branco e preto,
a lavadeira pipila
no tambor de lixo.


POÉTICA

As palavras do poema
são como as duas conchas
de uma ostra.


AQUI

Estou parado
na beira da estrada.
Mais nada.



O FERRO

Está sem carvão
o ferro de passar roupa.
Brilha no tempo.


PAISAGEM VERDE

A sombra verde das árvores
sobre o chão dos pobres
cheirando a lixo e dor.


A LOUCA

Com um peixe na mão,
uma mulher louca grita:
– Viva a vida!
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Meu poemeto Polpa, foi postado pelo Moacy Cirne,
com muita honra, no Balaio Porreta 1986 - http://balaiovermelho.blogspot.com/

sábado, 23 de maio de 2009

A sombra da lata



A SOMBRA DA LATA

À beira do mato
a lata e sua sombra
sobre as folhas secas.


ANSEIO

Deitamos na areia
olhando o céu azul.
Sonhamos com o mar.


NUVEM

Tenho uma nuvem na mão
densa como uma pedra,
mas chove.


PEGADAS

As minhas pegadas na areia
permanecem muito além
do vento e do tempo.


ESTRELA

Nada levo da vida
senão uma estrela
caída na água.


ENCONTRO

Perdi-me no bosque
para achar a poesia.


AS ÁGUAS

As águas do rio
são pedras ainda líquidas.


FIAT

Deus criou a luz.
Depois nada mais era preciso.


FUI

Fui como pedras.
A água e a terra leve
me poliram.


COMPLETUDE

Cortaram as árvores.
Mataram os pássaros.
O meu exílio é completo.


POLPA

Como a polpa de uma fruta,
o teu corpo.

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quarta-feira, 20 de maio de 2009

O mar em Fortaleza





Dia e noite ouço a música do mar.
Do 13º andar ouço as ondas
Voando como loucas no mesmo lugar.
Batem as asas, assopram, engolem.

Os navios no porto estão parados eternamente
Como uma garça sobre uma perna só.
As jangadas são verdes como o mar.
O tigre da manhã ruge feroz.

Ao meio-dia, à meia-noite o mar ruge.
Ouço o mar rugindo no outro mundo,
Ouço o grasnido de uma gaivota, ouço as pedras,

As árvores afogam-se no mar e gritam felizes.
Ouço o meu quarto navegando nas ondas do outro mundo.
Tenho todas as palavras na mão e desfolho o abismo.

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segunda-feira, 18 de maio de 2009

O deserto do poeta



O deserto fala comigo, grita, esperneia.
Sou areia ao vento, dunas, miragem.
Preencho o meu vazio com palavras
Como um poema, aceito o arco da forma.

Aprendo o silêncio com a música,
Carrego pássaros de sangue nos ombros,
Contemplo a rosa até queimar os olhos.
A minha vida é o violino do abismo.

Estou só como uma pedra sem árvore.
O poeta lavra a palavra com terra na boca,
Com espirais de areia e sol nos olhos.

O poeta é um cão, ladra na noite,
Disputa o osso do caos e perde.
Cavalgo para sempre o cavalo da loucura.

sábado, 16 de maio de 2009

Memória da terra



CENTRO

O centro da terra é o céu.


VOO

Na memória da terra
delira o azul do céu.


SERENIDADE

A pedra é serena.
Aceita a origem como água
e o fim como terra.


ETERNIDADE

O céu azul brilha
sobre o abismo das águas.
Nascemos para o eterno.


AUSTERIDADE

As pedras são estrelas
austeras caindo
sobre a terra e as águas.


HORIZONTE PERDIDO

O sol brilhava na minha alma.
Entre pedra e céu, achei-me.


FORMA

Qual a forma do poema?
A água e o espinho do cacto
contra o céu azul.


CAOS

Na memória da terra
a paisagem do eterno
e a pedra do caos.


DIAMANTE

Diamante contra o azul,
a beleza revela-se na morte.

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Foto: Sônia Brandão

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Gritos e sussurros



O GRITO

Quem me ouvirá
se eu gritar no escuro
quando os anjos dormem?


O SUSSURRO

A aranha devorou
a pequena abelha
e a ordem do universo não mudou.


A REVELAÇÃO

Sempre leio o Apocalipse
à procura das últimas notícias.
Encontro as primeiras.


GÊNESE

Poesia se faz com palavras
e sangue pulsando.
Do sangue nascem as palavras.


O GAVIÃO

Primeiro ouve-se um grasnido.
Depois um gavião leva-me os olhos
para que eu veja o sangue do alto.


VÊNUS

Quando criança quebrei uma Vênus de gesso.
Foi minha primeira obra de arte
e a constatação: o criador destrói a criatura.


A ÁRVORE E A CRUZ

O poeta vai ao dentista
mas não deixa a poesia do lado de fora.
A poesia senta-se com ele na cadeira de tortura,
abre a boca com ele, geme, sofre,
às vezes ganha a forma de um poema.

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Foto: Sônia Brandão

sábado, 9 de maio de 2009

Homenagem às mães



A MÃE

Quando a última batida do coração
Tiver feito cair o muro de sombra,
Para me conduzir ao Senhor, ó Mãe,
Como outrora me darás a mão.

De joelhos, decidida,
Serás uma estátua diante do Eterno,
Como eu já te via
Quando ainda eras viva.

Levantarás tremente os velhos braços,
Como quando expiraste
Dizendo: Meu Deus, estou aqui.

E só quando eu for perdoado,
Terás o desejo de me olhar.

Recordarás de me ter esperado tanto,
E terás nos olhos um leve suspiro.

Tradução de José Carlos Brandão

LA MADRE

E il cuore quando d’un ultimo battito
Avrà fatto cadere il muro d’ombra,
Per condurmi, Madre, sino al Signore,
Come una volta mi darai la mano.

In ginocchio, decisa,
Sarai una statua di fronte all’Eterno,
Come già ti vedeva
Quando eri ancora in vita.

Alzerai tremante le vecchie braccia,
Come quando spirasti
Dicendo: Mio Dio, eccomi.

E solo quando m’avrà perdonato,
Ti verrà desiderio di guardarmi.

Ricorderai d’avermi atteso tanto,
E avrai negli occhi un rapido sospiro

Giuseppe Ungaretti
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Foto: Sônia Brandão

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O gari verde



O gari verde não madura nunca
Para que a sua dor não se perceba.
Empurra o seu carrinho com a cacunda,
Empurra a dor adunca da limpeza

Com a vassoura e o ancinho da desgraça.
Ninguém vê o gari verde sofrendo,
Gemendo como se fizesse graça.
O gari vai da Praia de Iracema

À Volta da Jurema se apagando.
A calça curta verde, as meias verdes
Com a camisa azul e verde vão

Compondo a imagem do gari doendo
Por onde passa, para a Fortaleza
Bela brilhar ao sol como as palmeiras.

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A foto foi batida pela Sônia na Volta da Jurema, Praia do Meireles.
Ouvi falar bem da polícia e mal da prefeita.
Não ouvi falar bem nem mal dos garis. Eu tento cobrir essa lacuna.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Parabéns, Fortaleza







Dia 12: show de aniversário de Fortaleza, 283 anos. Imaginava Fortaleza mais velha, mas é bela. Mona Gadelha, por falta de uma Mona Lisa, introduz o show. Mona Gadelha é a imagem de Fortaleza, juventude, vitalidade da juventude, e beleza.

Ednardo entra e comove o público por quase duas horas. Ednardo não deixou Fortaleza: leva-a no coração. Fortaleza não deixou Ednardo: canta com ele as suas músicas, leva Ednardo no coração.

Mona canta blues. Ednardo, mal entra, sente-se a voz do cearense. Linda a “Aurora” de Ednardo: “Abre as janelas, manhã.” Enfim, temos a presença da poesia. Imagens palpáveis, plásticas. Canta a bela “Calu”, de Humberto Teixeira.

Gostei do “Dono dos teus olhos” – ritmo e imagens fortes. Juntando-se a outras composições, comprova-se o gosto de cantar a dor de cotovelo. Não por acaso, uma das músicas chama-se Lupicínica, lembrando Lupicínio Rodrigues, que era o poeta de dor de corno. Grandes poetas, Lupicínio e Ednardo.

Outras músicas: “Reizado”, “Art. 26”, “Amor de Estalo”, “Longarinas”, “Terral”, “Carneiro”, “Enquanto engoma”. O povo, uma praia apinhada de admiradores, vibrou com “Maresia”, “Manga Rosa”, “Doroty L”Amour” e, por fim, “Pavão Misterioso”.

Um senhor cheio de graças atrás de mim – um gozador?, figura popular pitoresca? Ednardo dedica uma música ao Augusto – seria o irmão, ali perto de mim? Depois nova música, lembrando muitos artistas que mantiveram de pé a arte em Fortaleza, aglutinados no festival Massafeira – em especial o Augusto Fontes, não o companheiro alegre a meu lado, mas o grande compositor e animador cultural.

Massafeira pode ter sido apenas um festival, mas fez história – e a História merece ser respeitada. Ednardo merece ser e é respeitado: – a sua empatia com o público é grande, está na pele, está nas veias como seiva.

As ondas do mar cantam louvando Fortaleza. O vento canta fazendo dançar as folhas das árvores. Um pavão misterioso ajuda a cantar com o mistério do seu voar. Alguma coisa não é certa, não, mas a beleza persiste no canto e no voo do pavão chamado Ednardo.

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O CÁRCERE DE BÁRBARA DE ALENCAR















Eu vi o cárcere de Bárbara de Alencar.
No subsolo, a pequena cela de tortura:
Atrás das grades, pedras, paredes de pedras,
A cela onde um homem não cabe em pé.

Bárbara recebia uma só refeição por dia,
Mas era muito: alimentava-se de pedras
E de orgulho ferido e erguido como bandeira.
As pedras eram cabras mansas para Bárbara

Ordenhar: Bárbara tirava leite das pedras.
“Quem me pedirá contas de meus atos?
Meu marido, meus filhos, o meu Ceará?

Quem combate o bom combate não sucumbe.
Eu colho na derrota toda a minha vitória.”
Ouvi a voz de Bárbara, viva, nas pedras.

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Depois de quase um mês em Fortaleza, Ceará, aqui estou de volta.
Fortaleza é bela, belíssima. Voltei com os olhos transbordando de imagens, com a alma lavada, pura como as águas primitivas do mar e da chuva. Foram vinte e tantos dias de mar, sol e chuva: pureza, beleza, finitude e infinitude.
Um grande abraço a todos os amigos. Saudades.