domingo, 8 de fevereiro de 2009

Entre pedra e água (Arte poética de João Cabral de Melo Neto)

Foto: Marjorie Salu

1. Entre pedra e água, essa indolência
de mineral voltado para
dentro de si mesmo até quando
em intensidade pulsando;

que se pedra e água à roda-viva
emaranha alheios corpos,
eles corpos nada verão
do miolo desse ocluso pão;

que entre pedra e água, a indiferença
geométrica, lâmina fria
desvenda as coisas, os alheios
volumes, nunca o próprio seio;

assim entre pedra e água, a faca
corta o poema, bem ao meio
da frieza bem-humorada
da palavra, infecta de nada.


2. Essa a imagem, sempre de fora
que o dentro é só dela palavra
medida com precisão, cálculo
entre pedra e água, o mais agudo;

que a alta defesa da palavra
é carta geográfica para
não se orientar, severo enigma
entre pedra e água, inapreendida;

que é essa a matemática doma
do que indômito se faz, verbo
deserto, de mil fímbrias, lâmina
entre pedra e água, onde se escande

o poema numa fímbria exata
e contida como se o número
fosse o próprio timbre do canto
entre pedra e água, penetrante;

3. Se quando alfinetes penetrem
uma garganta, entre pedra e água
jorre o canto, nunca de espesso
sangue, mas sim de seu avesso;

que um alfinete ou outra seta
procura o canto entre pedra e água
por conhecê-lo aí vazio
de lágrimas ou outros cios;

que uma agulha busca somente
a natureza entre pedra e água,
a natureza sem vertigens
só dela agulha, impassível;

que esse estilete fere tanto
uma garganta, entre pedra e água
para saber-se imagem pura,
poema inciso em ponta de agulha.


4. A pedra doma a água, o seu ímpeto
mais voraz, resistindo até
que, subjugada, ela arrefeça
seus vórtices e pare, queda;

a água doma a pedra, polindo
as suas arestas até
que se volte sobre si mesma,
lisa, tal seda, pedra seda;

esse metódico trabalho,
água contida pela pedra,
tal a palavra, entre pedra e água
que se contém, em grave lavra;

geometria elementar,
o amaciar da pedra pela água,
tal o poeta, entre pedra e água,
esse engenheiro da palavra.


5. Entre pedra e água está o poema,
sem perder sua vegetal
natureza aquém de raízes
e além-ramada, em cicatrizes;

cicatrizes que mais se con-
densam, em sendo o próprio âmago
dele poema entre pedra e água
de todo excesso depurado;

depurado em fino alguidar
onde o que entre pedra e água seja
o mais puro ouro que se busca,
o verbo vivo, verbo-súmula;

súmula do que de mais livre
concentra-se numa palavra,
antes e depois, mesmo quando
de entre pedra e água findo o encanto.

(Em 1972, escrevi este exercício de admiração a João Cabral de Melo Neto. Contraria muito o poeta, eu pensava, e esqueci-o. Hoje não tenho tantos escrúpulos e mostro-o.)

5 comentários:

Unknown disse...

Eu sou admiradora incondicional do grande João Cabral de Melo Neto, mas a poesia é feita de contrários.
Ainda bem que decidiste mostrá-lo: na contradição acrescenta, ilumina...

beijo

Ester disse...

Ah, meu caro poeta José!

Vim para comentar o teu maravilhoso poema deixado em meu blog e cá encontro outra obra de arte!

"..Entre pedra e água está o poema"

o poema está onde o colocamos, e fico feliz que o tenha publicado. Não poderia deixar-nos orfãos dos teus talelentos!

beijos encantados!

Cris Animal disse...

Maravilhoso!
Comentar a beleza é irracional. A beleza deve ser admirada. Absorvida.
Absorvo a beleza da sua poesia.
Ainda bem que publicou-a.
beijos
...............Cris Animal

Custódia Wolney disse...

Que linda poesia! Maestro das palavras!
Vim ler seus poemas e agradecer o que postaste no meu blog sobre a vida nos vãos das serras.
Beijos!

Solange Maia disse...

Belíssima homenagem... delícia quando encontramos essas surpresas em nossos guardados, não ?

E... muito obrigada pela visita ao meu blog, e pelas delicadas palavras... que bom que gostou do título... interpretou-o LINDAMENTE... vou guardar !!!!

Beijo carinhoso !
Solange Maia

http://eucaliptosnajanela.blogspot.com