quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Perfil



Falo esta minha fala de palavras
noturnas, onde me revelo inteiro.
Sou o que sou, e escrevo do que posso.
De minha face, que se fecha em si,

em dor que anseia pelo exato ritmo
que a transfigure, de evasiva imagem
a seu edificado espaço vivo.
Os resíduos do sonho ou da memória,

os labirintos do destino avaro,
o domínio do efêmero presente
no pensamento sábio, e ignorando,

as cinzas ilusórias, o que, alheio,
nosso julgamos. Vou mostrando, aos poucos,
os ângulos de minha face frágil.

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Desejo um ano novo com muita paz, sabedoria, beleza a todos os amigos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Construção

















Escolho as pedras do poema frágil.
Quero compô-lo com perícia tal:
Sua noite ordenada, na palavra
À palavra ajustada, com rigor.
Edifício de música e mistério,
A fábula criada se contempla
Voltada para dentro de si mesma.
Conceito circunspecto no declive
Da paixão, em sigilo resguardada.
Muralhas rubras guardam a garganta,
Correntes se erguem contra as cordas pobres.
Minha voz se contrai em seus limites.
Eu componho a forma, alta, concentrada.

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sábado, 26 de dezembro de 2009

O múrice e a rosa




Do múrice purpúreo à rosa negra:
as luzes do crepúsculo submersas,
a beleza perdida nas areias.

Por correntes sombrias sou levado,
pelos mares da noite, sob os sonhos.
Sou escravo de aranhas dementadas.

A morte intima o pulso latejante,
quem sou é uma voz e o sobressalto.
O silêncio me explica. Contra o céu.

Ultrapassei o umbral, as vagas dunas.
O amor salva, mergulho restituído.
Mas onde a seiva das estrelas dúbias?

Vivo o limite imposto, concha e pétala.
Não me encontro no espelho, em que me escondo.
Sou o múrice e a rosa, água velada.

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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Natal em Bagdá



A bomba desenha uma cruz em Bagdá
A estrela explode antes de nascer
A mulher rasga com as unhas o ventre ressequido
Dois olhos vazios me olham de lugar nenhum.

As árvores estão despidas como esqueletos
A rosa não tem mais nenhuma pétala
A raposa e outros bichos tristes choram no deserto
O universo é um cogumelo gotejando.

Profeta sobrevivente do exílio
Já não tenho voz e canto à beira da estrada.
Todas as crianças têm a garganta cortada

O sangue das crianças colore a aurora.
Um menino queima sobre a palha
Das suas cinzas o novo homem vai renascer.

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domingo, 20 de dezembro de 2009

Altura




No horizonte, onde cessa o sol,
a luz, branca e lívida, extingue-se
e se azula de verde e frio
a paisagem alta do céu.

Somente o céu é tudo, no alto,
como se abolindo, remoto,
e vejo, confuso, o reflexo
dele, nulo, num lago em mim,

lago recluso entre rochedos
hirtos, calado, olhar de morto,
em que, esquecida, se contempla
a altura, sem angústia, absorta.

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sábado, 19 de dezembro de 2009

Nitidez



Vejo nítido o céu ao sol,
azul esverdeado e cinza branco.
Sobre os montes da outra margem
paira uma névoa cor-de-rosa.

Visão que se extingue de súbito,
num intervalo entre dois nadas.
Asa no alto, entre céu e mágoa,
veio prolixo e machucado.

Esqueço, como uma saudade
que todo mundo tem por tudo,
e me invade um ópio da noite
num êxtase alheio de nada.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Livro do Desassossego



LUSCO-FUSCO

O que é isto que escrevo? Para quê?
Quem sou? Que imagem crio no poema?
Sou uma sombra na caverna alheia?
Faço a barba na minha face ou de outrem?


LIVRO DO DESASSOSSEGO

A concha sobre o livro sossegada
carrega vida alheia primitiva.
O poeta fechado em si mesmo
carrega a vida alheia de uma concha.


A POMBA FERIDA

Ferida pelas garras do gavião,
a pomba pulsa e sangra em agonia.
Depois do último voo angustiado,
vem, serena, morrer num só soluço.


O MACACO

O macaco na jaula tem cócegas
ou são minhas caretas no espelho?
Sou um bicho vestido de consciência
de macaco na jaula com cócegas.


PENUMBRA

Caminho na penumbra, entre destroços.
Vivo no lusco-fusco da consciência:
não conheço o ângulo do meu desejo,
não sei quem sou ou quem suponho ser.


A EMILY DICKINSON

Faça a cama com cuidado,
uma cama larga e macia
que acolha o nosso sono
até o Juízo Final.

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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Com o arame farpado na língua




1.

Com o arame farpado na língua
não me calo.
O sangue é a minha voz.
A minha língua sangrenta sobe ao céu.


2.

Com a faca da poesia na mão
escrevo na carne o meu poema.
Sei que um dia morrerei, mas deixo
a semente do meu grito plantada na terra.


3.

Contemplo o mundo do alto da montanha.
Os homens são formigas entre ruínas,
a cidade é um cigarro apagado.
Repouso entre as nuvens e as pedras duras.


4.

Primeiro ouvimos o toque de silêncio.
Depois caminhamos pelo pátio desolado.
Um de nós havia morrido afogado
e era como se cada um de nós fosse o morto.


5.

Não fui nem nunca serei barro a ser moldado.
Eu próprio moldei minha forma de homem.
Ordeno: pare, chuva; pare, sol.
Enfim, me atiro da muralha e morro.


6.

Na pedra a lição de poesia.
O mistério das coisas, nítida escrita
nas ranhuras leves ou fundas da pedra.
Olho a pedra como a um espelho.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Poema de Natal



E o anjo do Senhor anunciou a Maria
E ela concebeu do Espírito Santo.
Dois mil anos se passaram
E ainda se ouvem as trombetas da alegria.
A estrela brilha no alto da montanha
E ilumina o universo de esperança.

A terra inteira festeja o Mistério.
O primeiro milagre de Jesus
Não foi mudar a água no vinho em Caná,
Mas tornar-se homem no ventre de Maria.
Sem deixar de ser Deus,
Jesus se esvaziou da divindade,
Ganhou carne e alma humana para a Redenção.

O homem não se salvaria
Se o Salvador não nascesse de Maria.
Os pastores e os reis adoraram o Menino
Envolto em panos e deitado na palha,
Deitado no leito de madeira como a cruz do Amor.

Maria é a nova Eva,
com a maçã na mão e a serpente aos pés,
Jesus é o novo Adão
Da aliança eterna, sempre nova.
O pão e o vinho são a carne e o sangue
Da ação de graças de toda a Criação.

E tudo começou na estrebaria,
O Menino nascendo de Maria.
Cantamos a primeira igreja: Jesus, Maria e José.
Na sagrada família de Nazaré
O amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Retrato




Viver cada dia
como se fosse o último,
isso eu quereria,
e a face tranquila
de algum sábio antigo.

Dizer “carpe diem”
e colher os pomos
dourados do dia,
porque do amanhã
ninguém mesmo sabe.

Os dias se vão,
mas eu permaneço
sob o sol e a chuva,
contemplando a vida
em casa ou na estrada.

Falo do infinito
para além do umbral,
muito além da porta,
num copo de vinho,
no corpo da noite.

O dia nascia
azul, com o sol
e com tantos pássaros.
Tudo no lugar
das coisas da vida.

Tomo a noite escura,
o deserto e a areia,
a pedra e a montanha,
me perco de mim,
mas encontro Deus.

Se parece absurdo
morrer algum dia,
mais parece absurdo
viver para sempre
nos dias da vida.

Mas de onde viemos
e para onde vamos?
Afinal, quem somos?
A poeira cósmica
da ideia de Deus?

A poesia cósmica
criada por Deus
contemplo extasiado,
e me entrego à paz
da beleza antiga.

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Uma leitura do livro Retrato, de Marly de Oliveira.

A foto da Sônia lembra que o retrato também é meu.

(e entro em "férias" por uma semana...)

domingo, 6 de dezembro de 2009

O Pequeno Príncipe




No mosaico da vida
a obra de arte contida.
O meu espelho inteiro,
de onde, para subir,

desço. No vão da escada,
a minha alma converte
o universo num grão
de areia, sal, feijão.

De onde viemos, de onde
vem o pequeno príncipe
que somos, num abrupto
susto? A escrita do acaso?

Deus me perdoe, mas quem
me fez nada, ninguém?
O filtro das palavras
não me livra das larvas.

Não se diz o indizível
fardo falho, mas íntegro.

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Uma leitura do poema O Pequeno Príncipe, de Marcelo Novaes,
http://olugarqueimporta.blogspot.com/2009/01/parecer.html

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O sol me queima as penas




O sol me queima as penas
e o corpo frágil.
Sonho sem asas
e canto a minha morte.

A minha ausência na espuma,
na sombra apunhalada.
A paisagem leve das aves
e o sangue no altar da distância.

As árvores na tarde fria,
erguem os seus ramos vazios
lembrando-nos o nosso nada:
despidos para o azul de Deus.

Por acaso olhei para fora,
por acaso nos encontramos
à luz pura do dia largo
com uma pergunta nos lábios.

Neste exílio em que vivo,
nesta ilha de palavras,
encontro a minha face
no espelho redivivo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A névoa




Deixa a névoa suspensa
de teus olhos, imensa.

Deixa a névoa cobrir
miragens do possível.

A paz é flor distante,
é pedra dissolvida.

Toda memória apaga-se,
resta a névoa do olvido.

E teu relógio talha
os minutos sofridos.

O real da paisagem
perdida sob a névoa.

Há sombrias imagens.
E tudo o mais é treva.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Gleba



Noite imóvel, enigmática:
muralha errática:
de olvido.

Por breve momento:
o tempo não era o tempo:
de tão antigo.

Templo de pedra noturna:
o universo em cinza ondula:
tépida gleba.

Azul? escrínio? alfange?
o mundo é ocre, terra
e sangue.


.............


Um lábio secular em noturna
vigília: inflexível resíduo?
rosa suspensa.

O suspiro lento giro
da ausência: nítida a
palavra: exata e inarticulada.

Pálido segredo: labirinto
de evidências: a flor lavra
cristal e azul.

sábado, 28 de novembro de 2009

Ritual




7

A água beija a pedra,
a pedra beija a água.
O desejo verde
nos lábios da alma.


6

A minha perspectiva é a vida
traçada com rigor de arte e sangue.
Manejo cores e formas plásticas
no espaço: meu projeto didático.


2

Alimento o meu coração
com o leite das rosas rubras.
São tochas brilhando na noite,
são asas ligeiras e me levam.


5

Estou no fundo do poço,
sem nenhuma saída.
Mas as estrelas brilham
na água doce.


1

Ó meu Deus, quanto tempo vamos
aguentar a nossa crucifixão?
O cálice está esgotado,
já bebemos toda a dor do mundo.


4

Um corvo morto sobre a mesa.
As luzes apagadas.
Uma sombra esvoaça.
Um melro canta a palavra do ritual.


3

Este é um lugar quase sagrado.
Descubram a cabeça em reverência,
fechem as bocas, escutem em silêncio
a voz dos mortos debaixo da terra.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Thoreau e Manoel de Barros




“Já conhecemos a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil. Dizem por lá que conhecimento é poder e coisas desse gênero. Eu penso que precisamos também de uma Sociedade para a difusão da Ignorância Útil, o que podemos chamar de Conhecimento Belo, um conhecimento útil num sentido mais elevado: pois o que vem a ser maior parte de nossa decantada e apregoada sabedoria senão a presunção de conhecer alguma coisa, presunção essa que nos priva da vantagem da autêntica ignorância? Frequentemente o que consideramos conhecimento é nossa ignorância positiva, sendo a ignorância o nosso conhecimento negativo. Depois de longos anos de trabalho e leitura de jornais – o que são as estantes da ciência senão arquivos de jornais? – um homem acumula uma miríade de fatos, empilha-os na memória; depois, quando em alguma primavera de sua vida resolve vagabundear até os Grandes Campos do Pensamento, ele por assim dizer cai de quatro e pasta na grama como um cavalo, deixando no estábulo todos os arreios. Gostaria de dizer, às vezes, para a Sociedade para a Difusão do Conhecimento Útil: caiam de quatro e pastem na grama. Há tempo demais vocês estão comendo feno. A primavera chegou e trouxe o verde às vegetações. As próprias vacas buscam as pastagens mais retiradas ainda antes do fim de maio; mas já ouvi falar de um fazendeiro desnaturado que mantinha sua vaca presa no celeiro o ano inteiro alimentando-a com feno. É assim que muitas vezes a Sociedade para o Conhecimento Útil trata seu gado.”
A ignorância às vezes é não apenas útil, mas linda; a chamada sabedoria é frequentemente pior do que inútil, além de horrorosa.”

H. D. Thoreau – Desobedecendo – Círculo do Livro – São Paulo, s/d.

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Não costumo postar textos alheios, trabalhando para a Difusão do Conhecimento Útil, afinal, mas não aguentei quando li Thoreau com o sabor verde das coisas de Manoel de Barros. Achei o máximo, é fabuloso o parentesco destes dois poetas e gênios.

No parágrafo anterior Thoreau diz: “Os espanhóis (lembremos que Thoreau é poeta e não cientista, tem compromisso com a beleza e não com a verdade) possuem uma ótima expressão para indicar esse conhecimento selvagem e sombrio: gramática parda...” Um dos belíssimos títulos de Manoel de Barros é Gramática Expositiva do Chão, nome-irmão da gramática parda de Thoreau.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Nightmare




Desaba sobre mim, ó infinito.

Terror êxul: espelho e labirinto,
as árdegas estrelas e a esfinge.

A potranca da noite me devora,
quem me sonha adormece em minha cova.


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Mais um pouco do meu processo criativo.
Este poema tem uns 35 anos. Eu tinha lido em Borges umas duas vezes que “nightmare”, pesadelo, era a égua da noite. A imagem é fantástica, o nome em inglês é pura metáfora. Por que Borges não fizera um poema sobre ele, apenas citara o fato da imagem nos radicais? Na terceira vez que li a citação, fiz o poema. O nome em si vale um poema. Mas aqui fica o que, com ele, desabou em mim.

sábado, 21 de novembro de 2009

Poema da necessidade




Os meus olhos de homem são cegos, a minha língua é seca. Preciso um sinal de Deus.
Estou cansado de apalpar o escuro e destilar palavras de pó.

Sou um homem, não domino as categorias do divino.
O meu sentido do êxtase é o pão nosso de cada dia.

As solas dos meus sapatos estão gastas,
Eu não me canso de andar, sempre para mais além:
A beira do abismo não é própria do homem.

A mesa posta, o pão e o vinho, a palavra e a luz
São tudo de que preciso para celebrar a vida.
Caminho entre as rosas, sob a chuva das estrelas,

Abraço a minha mulher e o meu filho,
O espírito nos une sob o mesmo teto.
Mas sou um homem e preciso ver a face de Deus.

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A Carroça do Caos é de 2007.
Poema da Necessidade (sim, o título lembra Drummond), antes chamado simplesmente Um Homem, é de um ano depois. Como eu andara lendo Milosz, achei até que copiara ou tomara de empréstimo a ideia. Relendo, não a achei em Milosz. Estava na Carroça do Caos - plagiara a mim mesmo, com o trabalho apenas de suavizar a linguagem. Ofereço aqui aos leitores como amostra do meu processo criativo, com muito de inconsciente.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A carroça do caos




Estou cansado de puxar a carroça do caos.
Estou esmigalhado sob a mó do tempo que não para, não para.
Sou escravo dos meus cinco sentidos e gemo e suo sangue.
Cego e surdo e castrado, quero ouvir a voz de Deus.

Eu fui castrado do meu sentido essencial: o êxtase.
Eu fui castrado da contemplação do divino e agonizo.
Eu navego no mar de veneno da minha vida,
Eu estrangulo os lírios do campo e os pássaros do céu.

Estou nu como uma pedra, como um sabugo apodrecendo.
Acalento a desgraça no peito como uma serpente, um abutre:
A serpente me leva o coração,

O abutre me devora o fígado, os olhos, a língua.
Amei com um ódio vil a minha condição de réprobo.
A vida me foge, sapateio no palco, a multidão aplaude.

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Foto: Contemplação de Ouro Preto, 2007.
Poema de O Silêncio de Deus, 2009.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Aleijadinho 18-11-1814+



Deixei os pedaços da minha carne nas ladeiras de Ouro Preto.
Entre as pedras do calvário das ladeiras de Ouro Preto
Deixei os pedaços da minha carne e dos meus ossos.
Mutilado pelo divino, esculpo a forma do divino.

O meu coração é de pedra e rói como o ódio.
Eu trabalho o corpo de Deus, eu, o sem-corpo.
A pedra me obedece com uma fé cega.
Deixei um pedaço do meu nariz na pedra cega.

O cinzel amarrado no coto da minha mão
Faz saltar lágrimas e sangue da pedra muda.
A minha fronte, face e beiço estão grudados na pedra.

Talho a imagem de Deus à minha imagem.
A pedra sabe e fala sob o meu cinzel.
Do fundo do meu horror, olho para o céu – petrificado.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

A história de Ruth e O cavalo de pedra




168.

Ruth, a moabita, descobriu os pés de Booz
e deitou-se a seu lado sob a tenda vermelha.
O trigal agitou-se com o brilho das estrelas.
Quando ela se levantou, era Ruth, a judia.


163.

A figura na cerâmica, azul, oval,
mergulha no cristal do espelho, nua,
alma plástica, sílfide parada no ar.
Concreta, Deus mais aérea não a quis.


164.

O punhal feroz, em silêncio, agudo
à espera da carne, sua, em ânsia nua.
O espaço entre a vida e a morte, frio,
na lâmina expectante, mas tão irreal.


169.

Ouçam as gaivotas! Ouçam as gaivotas!
As ondas do mar quebram-se na praia.
Em meu canto a quilômetros de distância,
quase posso tocar a brancura das espumas!


165.

Penso na morte como quem pensa na vida.
O meu limite é sempre mais além, no eterno.
A música da morte leva-me ao princípio
do silêncio de Deus, antes da criação.


167.

Trazemos as flores da loucura nos olhos.
As harpias da guerra ceifam a esperança
e a areia escura do deserto nos derruba.
Sem voz, cantamos nos círculos do caos.


166.

O diamante é puro como uma alma.
Eu me consumo no deserto escuro,
do silêncio o absoluto ser assumo:
me perco e mais perto de Deus estou.



201

O cavalo de pedra na paisagem,
o sol de outubro, o inclemente sol.
Pasto de verde e pedra irmanados
como duas verdades da beleza.

___________________

Dois dedos de memória. Faz uns 40 anos planejei escrever um romance do Livro de Ruth. Não há muita matéria para um romance? Thomas Mann escreveu a história de José em vários volumes. É a questão de ser ou não romancista.

E não estou com pretensão nenhuma de realizar esta ou aquela obra. Escrevo ao acaso, compondo os poemas que me veem à cabeça. É uma forma de adestrar a mão e a cabeça - aliás, de não perder a mão e a cabeça.

Esses dias pensei na história de Ruth como um poema. Como sou poeta, foi fácil. Seria um poema de 14 versos mais ou menos. Como estou trabalhando com a síntese, coluna dorsal da poesia, fiz o poema em dois versos. Acrescentei os dois do meio porque estou trabalhando com quadras - o que não o melhora, mas encorpa, torna-o (talvez) mais poema.

O cavalo de pedra é uma brincadeira, desde quando o fotografei. Sem muita pretensão, o poema tem uma ou duas verdades da poesia.

domingo, 15 de novembro de 2009

Dois dedos de prosa



ESSÊNCIA

A rosa essencial, entre o tempo e a eternidade. O resto é silêncio.


A RELVA

Cresce a relva sobre a sua boca, cresce a relva.


AMO O MISTÉRIO

Amo o mistério porque não sou eu, não são os outros, nem as coisas, mas tudo que está além de mim, de minhas limitações humanas.


A NOSSA VINCULAÇÃO

A nossa vinculação com a terra, de onde viemos, as nossas raízes. Ficar deitado na terra, recebendo a força, toda a energia da terra.


ERA A ÁRVORE

Era a árvore frondosa, ou a trepadeira que se estende sempre mais além.
Era a água, seu poder transformador, o rio da vida.
Era o barquinho fazendo água, o remador pobre, levando o barco e sendo levado por ele, pelas águas.


O QUE SINTO

O que sinto, se o escrevo, são palavras.
Todos os sentimentos do mundo, ou se perdem, ou, se são registrados, para não se perderem, são palavras, que se perdem, porque não são nada.


AS MANGAS

As mangas contra o céu azul. O vermelho das mangas, o verde das folhas, e o azul do céu. Sentimento de saciedade e de infinito. A beleza das frutas e o infinito além do azul me saciam. Não preciso pensar em Deus como não preciso pensar nas mangas.


A MULHER E O GIRASSOL

Qual mais belo? São belezas diferentes, por que temos que nos metermos em comparações? A beleza da mulher está mais do que nos olhos, no instante em que foi apreendida. Na apreensão desse instante. Mas a beleza do girassol também está na apreensão do instante. Não serão uma só beleza? Como olhá-los ao mesmo tempo? Impossível, mas necessário olhá-los ao mesmo tempo. Na linha limítrofe desse olhar, está a beleza.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O muro de Berlim, vinte anos depois

Foto: Flickr - Márcio Nel Cimatti

Berlim, 89-09-11

O homem olha por uma fenda no muro;
os olhos não estão muito abertos, mas veem.
O homem sabe como é a vida do outro lado:
as ideias e os passos vigiados, dia e noite.

O sorriso contido, e o cenho, duro, franzido.
O futuro se esconde sob a névoa cinza;
está muito distante, talvez não exista.
Talvez o homem, nervoso, não saiba sorrir.

Tem a cabeça estrangulada no vão do muro;
um ferro do concreto asfixia-lhe a garganta.
O muro é cinza, todo muro do mundo é cinza;

mas tem um quê de permanência e resiste;
como uma idéia, não quer ruir, desabar.
Como os homens, o muro rui contra a vontade.

Do lado de cá, duas pessoas passam.
Passam, sob os seus grossos capotes,
a cabeça enterrada nos gorros de lã.
Vejo uma parte da cabeça, do gorro,

de uma pessoa; de outra, meio corpo,
a bolsa de mulher a tiracolo, cinzenta.
Não se distingue nem o sexo das pessoas.
São anônimos, passageiros, estrangeiros:

a história é feita de anônimos, como nós.
Nós, que olhamos, somos anônimos.
Não haveria apenas umas três pessoas

diante do muro, mas uma multidão;
estranhos, não se reconhecem; passam.
O muro tira a face e o nome das pessoas.

Uma face na fenda do muro, sem dono:
pertence à história, como a letra cortada;
deve ser R, mas bem pode ser um K,
um K de Kafka, um K absurdo, anônimo.

A letra é uma incógnita: K ou R?
Seria um R da RDA democrática?
Alguma coisa significa esse R ou K?
O muro é signo; a letra, letra morta.

Alguma coisa significa? A face absurda?
Perdi o nome; sou uma incógnita no tempo.
Não sou a multidão em pé diante do muro,

nem as pessoas escondidas, sob feridas,
no anonimato da história, sob o muro
que rui e fica, muro absurdo, só muro.

Bauru, 09-09-11

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Cristo de Baependi


Baependi
Upload feito originalmente por Haroldo Kennedy


O Cristo de Baependi

O rio do tempo ainda e sempre corre
e suas águas lavam a memória
e as fábulas sonhadas. Tudo morre.
Pouco mais resta que uma velha história:

“A verdade de cada dia jorre
e junte na madeira a chaga e a glória.
A dor que Deus não vê e não socorre
seja gravada em síntese corpórea.”

E enquanto o esquecimento dilatado
as coisas de cruzada cinza tece,
em Baependi o Cristo permanece.

As ondas do destino levantado
a arte barroca anônima velando.
À sombra das montanhas serenando.

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Este poema tem 33 anos. Na minha viagem de núpcias, em julho, passei por várias cidades do sul de Minas, entre elas Baependi. Foi quando conheci essa história e escrevi um soneto tentando recriá-la. Não gostei do resultado e nunca o publiquei. Mas uma obra de arte, como se diz, nunca é de se jogar fora.

Pensando em mostrá-lo aos amigos, procurei na internet uma imagem do Cristo da história. Nenhuma referência ao Cristo que me foi apresentado com fervor. Agora só se fala na Nhá Chica, que talvez, segundo dizem e esperam, se torne a primeira santa brasileira. Encontrei uma imagem do Cristo, sem nenhuma explicação.

Lembro-me da escultura como dolorosamente bela. Na época, escrevi a seguinte apresentação do poema. Vejo que agora é mais do que necessária. O motivo e matéria que glosei, mal ou bem, evaporou-se. Interessante: perdendo-se na história, o meu poema tornou-se histórico.

“Baependi é uma das cidades mineiras sem nenhuma fama, nenhuma produção de vulto, conhecida apenas por seu Cristo e a lenda que o envolve: um fazendeiro, curado o filho doente, fez construir, por um desconhecido que se isolou em uma cabana, um Cristo em tamanho natural, cravejado de pedras preciosas, com expressão de sofrimento intenso e, dizem todos que tiveram a desdita de as olharem naqueles tempos, há bem mais de duzentos anos, com as feições do moço curado, que teve a sua cura bem paga.”

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sábado, 7 de novembro de 2009

O Silêncio de Deus – para download




Caros amigos,

Lembram-se do meu poeminha Antipregão? “Não faço um poema / para vender na feira.” Pouca poesia, mas lembra um fato importante: a arte não tem preço. Por isso, pouco depois de lançar a edição impressa de meu livro O Silêncio de Deus, estou lhes oferecendo o arquivo para download. É só clicar na capa do livro logo ao lado neste blog.

Quem quiser, depois, poderá clicar na capa logo abaixo para adquirir o livro impresso. Muita gente considera que é outra coisa o objeto-livro, que é preciso tocar com as mãos, sentir o peso, até mesmo cheirar o livro. Mas é bom, primeiro, conhecer o material: não vou comprando qualquer coisa, minha casa já está atulhada de livros. Então, façam o download – são uns segundos apenas.

O Silêncio de Deus é muito importante para mim. Em 1999, tive um livro premiado com esse nome. Nesses dez anos, tenho organizado mais de dez livros com esse mesmo nome e poemas diferentes (cheguei também a reunir novos poemas com novos nomes, quase pensando tratar-se do primitivo O Silêncio de Deus). Borges dizia que publicava um livro para se livrar das inevitáveis alterações – embora acabasse fazendo alterações nos textos, mesmo depois de publicados. Prometo não fazer alterações nos poemas de O Silêncio de Deus nos próximos dez anos (embora promessas sejam feitas porque existe a possibilidade de não cumpri-las).

A Árvore e a Cruz é o primeiro poema do livro – foi publicado em jornal em 1978. Estrangeiros, Monte Branco e Pureza são anteriores. Escuna é ainda mais antigo, do tempo de O Emparedado (1975). Desses que me lembro no momento. Quero dizer que O Silêncio de Deus contém os melhores poemas que escrevi e não publiquei em livro – e sobreviveram ao tempo, esse juiz implacável.

Há alguns poemas novos – ninguém é perfeito. Isto é, apesar da minha imperfeição humana, acredito ter bastante experiência para não ter escolhido mal esses poemas.

Continuo fiel a meus temas iniciais – a beleza e o efêmero, a ânsia de permanência e a precariedade de tudo, o estranhamento, a busca de uma identidade essencial. Temas universais, afinal de contas.

Como sempre digo, não sou nada original – e também é fato que não existem idéias novas – mas as imagens podem ser novas: dependem do olhar de quem as vê e o olhar de cada homem é único. Esse único torna múltiplas as imagens. E justifica o fato de se escrever poesia ainda.

Saboreiem da minha mesa, meus irmãos.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O emparedado



Eu sempre calado
entre estranhos dobres.
Eis-me limitado
por estanho e cobre.
Eis-me emparedado
no meu quarto pobre.
Ainda mais me calo,
por mais que me dobres.
Sempre o mesmo avaro,
por mais que me cobres.

Parco de palavras
e outros marcos úteis.
Nessas minhas lavras,
sempre mais inúteis.
Memórias escravas,
minhas cobras fúteis.
Meus anjos de lavas,
trevas, barros súteis.
Eis-me em lande escassa:
longe, as formas dúcteis.

Esse o meu destino.
Moldar a estrutura
de encruados mitos.
Na pedra mais dura
forjar um estilo
de vaga ventura.
Nesta arte prossigo,
hera de ternura.
Neste brando rito,
palavra mais pura.

Do quarto as paredes
a pele do corpo.
Isolam as sedes
deste vário horto,
lançadas as redes
onde tudo é morto.
Onde eram as lendas
é um olho torto.
Por que se desvendem
as vozes do orco.

E o que era talvez
um menino antigo
finda-se de vez.
Desse mito findo
o muro de pez
e íntimo granito.
Dessa viuvez
no verbo falido.

– Um poema não lês,
não se lê o olvido.

____________________

Tempo de memória. Não mudei muito: penso que este poema já velho (in O Emparedado, Companhia Editora Americana, Rio, 1975) ainda me define.

A foto é da Sônia.
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domingo, 25 de outubro de 2009

A poesia física e outros poemetos



A GALINHA

A galinha deixa na terra molhada as marcas
de seus pés, como uma escrita indecifrável.
Penso nas minhas palavras, que o vento apaga,
indecifráveis e vãs como os signos da galinha.


O FOGO CONSUMIU

O fogo consumiu as memórias do pássaro,
as labaredas se elevaram das casas e das árvores.
As flores se afogaram no sangue, sob as cinzas.
Eu caminhei sozinho sobre as nuvens dos sonhos.


NADA E TUDO

Eu andava num lago de cristal.
Inesperadamente, o gelo partiu-se
e vi surgir da água, batendo as asas,
o milagre do nada e tudo de Deus.


AS ÁRVORES DANÇAVAM

As árvores dançavam na tempestade,
as casas adernavam sobre as águas,
um boi com um nenê no lombo nadava.
Olha!, o nenê, como um pombo, quer voar!


NA VASTA PRAIA

Na vasta praia sonha o sonhador
olhando uma gaivota na crista duma onda,
o ouro do sol queimando as asas fulvas
e a espuma efêmera das vagas apagando-se.


A MULHER-FLAMA

A mulher é só flama, inteiramente.
Avança, uma serpente coleando,
e envolve de tal forma o homem, submisso,
que o queima no êxtase de sua lâmina.


OUTRO HORIZONTE

A minha rude língua na rude língua do vento,
as gaivotas sobre os mastros e as espumas brancas.
A tormenta se anuncia e é sempre manhã no mar
e um outro horizonte é possível e se abre em arco.


TARDE BELA

A tarde bela como uma flauta mágica.
A morte senta-se no colo da Esfinge.
A angústia morreu de parto.
Deus dança sobre o mar e sorri.


A POESIA FÍSICA

A poesia é física como a pedra.
Ninguém pode medir, mas sei
sua medida exata: princípio e fim
em si mesma contida, irreversível.


A ESFINGE

A Esfinge, em seus véus, não sabe sorrir.
Não decide nada; no escuro, não se move.
A Esfinge desconhece a música; é surda.
Cega, é consumida pelo fogo do poema.


O BARCO BÁRBARO

Sou um bárbaro, um barco bêbado de alegria.
É indizível a beleza do estrangeiro afogado
na água dos meus olhos de recifes tenebrosos.
Minha língua me revela a pérola negra de Deus.


O OLHO VERDE

O poeta tinha um olho verde líquido
com árvores e pássaros e peixes nadando.
O poeta tinha a luz nos olhos verdes
periférica, elíptica, concha e sol marinho.


O DRAGÃO DE BRONZE

Era um fascinante dragão de bronze,
com a garganta-angústia do indizível.
Soltava labaredas pelos olhos,
queimava a palavra e seu sucedâneo.

_________________

Estarei fora por uma semana e pouco.
Deixo uma série de poemetos para irem apreciando devagar.
Desde uma simples galinha, Deus, um improvável dragão, até um barco bêbado com pouco Rimbaud na tripulação, tudo é matéria de poesia.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Poalha de poemas




1. POALHA DE ESTRELAS

Uma poalha de estrelas me fica nos olhos
como uma toalha sacudida de diamantes
quando brilha o sol no orvalho da manhã.
A vida é nítida como um grito de pássaro.


8.

Não tenho sonhos. Acordo novo
como um dia de sol emerge da noite.
O girassol sorri para as abelhas
e tudo é presente no ouro da ampulheta.


11.

Deito-me ao sol dourado, sob o verde das árvores,
como um lago sereno com suas flores e pássaros.
A brisa ergue no ar a poeira fina dos estames
e a terra fertiliza-se como num encantamento.


10.

Chego à janela e vejo a rua e a montanha,
o céu, os astros e o infinito do universo
constelado. Consciente do que vejo e sinto,
gravo a palavra e a imagem que a transcende.


3.

Era tanta chuva sobre nós.
Uma gota e o mar transborda.
Quebrei o jarro, tantas rosas boiaram.
Se não morrêssemos, que lindo o dilúvio!


7.

Tomo da palavra como uma chave de fogo.
Ouço o canto das estrelas nas conchas marinhas.
O sino toca na montanha acordando o homem.
O meu tronco de árvore floresce e frutifica.


5. A CAVERNA

Eu vim da caverna ancestral.
Os mitos se esboroam, a casa da poesia
é a única morada de Deus.
A lâmpada de argila brilha ainda.


6.

O homem caminha dentro da noite escura.
Não sabe para onde vai: procura uma estrela.
Não tem memória, habita a concha do silêncio.
As manchas estranhas das árvores o apavoram.


4. O LAMPIÃO

O lampião da minha infância brilha e faz sombra
na mesa da cozinha, nas paredes, nas telhas altas
e no infinito, nos mistérios da noite e de Deus.
Sou pequeno hoje como então, no meu passado morto.


9. NO MEIO DA PONTE

Estou no meio da ponte, olhando o rio,
as águas negras regurgitando lá embaixo
como um pulmão com todas as árvores e estrelas
pulsando, o infinito contido na rede desta noite.


2. A VIDRAÇA DA CHUVA

Encosto o nariz à vidraça da chuva
que se embaça, em lágrimas, com o meu bafo.
A água cai e passa, fora, enquanto dentro
fico, com a minha alegria natural de ser.

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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Êxtase e dor




3.

A primavera sente a dor do tempo,
as pétalas e os pistilos estragados,
a cor rosa desbotando-se, suja,
é a face da beleza que sofre e morre.


5.

Um cálice de vinho basta para o êxtase.
O carvalho vestiu-se de verde e prata.
Plantei sementes de palavras na terra arada,
um menino nasceu nas asas de um pássaro.


1.

O velho, imóvel, tecia a sua rede.
Imóvel, apenas os dedos se mexiam.
Uma membrana nevoenta lhe cobria os olhos.
O menino erguia o véu do mistério da vida.


7.

Um albatroz voava no alto do céu límpido.
Havia um corpo morto largado na praia.
Iam e vinham as ondas que o trouxeram.
Os olhos parados refletiam o calmo azul.


9.

Passa a nuvem branca pelo céu azul
desenhando os seus animais delicados.
Ensina que a vida é passar, na altura,
como os animais, ruminando a paisagem.


6.

Os castelos de pedra coroam o céu do sertão.
As araras devoram o pequi ou as espigas de milho.
Os urubus-rei se escondem nos buracos da serra.
A vida prossegue no equilíbrio natural das coisas.


4.

A escuridão está sob os meus pés,
e acima do céu, sobre as asas dos ventos,
e se esconde na água tenebrosa do mar.
Sou nada. Estou pronto para Deus.


8.

Escrever é um testemunho da alegria.
A vida vale a pena quando abrimos os olhos
para o mundo e vemos, por baixo do pano, Deus.
De dentro do caramujo a lesma bebe o sol.


2.

O teu corpo sobre o lençol de rosas,
as pétalas de sangue na sombra do lago.
O sol gira no céu azul-metálico,
o êxtase de uma abelha coroa-te de ouro.

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domingo, 18 de outubro de 2009

No teatro da vida




17.
Apoiei a cabeça na pedra e dormi.
Sonhei com os mortos construindo uma casa,
os ossos eram flautas e harpas ao vento.
A pedra pulsava em silêncio como uma alma.


18.
A morte entrou no sonho das crianças.
Tinha leite materno, cantava suavemente,
penteava as bonecas e os cachorrinhos empalhados.
As crianças choravam com um sorriso feliz.


19.
A água existe antes do homem.
A claridade da água é como o sol,
a areia e as pedras brilham no fundo.
Você pensa no suicídio, nesse espelho.


20.
No teatro da vida, a morte joga cartas.
Tem naipes de paus nos dedos ossudos,
olha com cobiça os teus ases de ouro.
De repente, o teu coração sangra ao sol.


21.
Somos uma raça antiquíssima, sem face e sem nome.
Os grandes navios assolam-nos no mar do tempo.
As coisas nos limitam, nossa linha de giz.
Na praia indecisa plantamos nossa bandeira.


22.
Onde quer que estejamos, somos estrangeiros.
Qual é o nosso escudo? Qual destino é o nosso?
Ninguém entende nossas palavras, ou nosso Deus.
Somos o âmbar lançado à praia pelo mar.


23.
Eu andei nas falésias do Beberibe,
deixei a marca dos meus pés na areia colorida.
De dentro das grutas gotejantes,
contemplei o céu azul de Deus.


24.
O meu olhar vazio, sem relíquias.
Sou um homem estúpido que perdeu o pai.
Secaram as árvores do meu pulmão,
as minhas palavras são pássaros de pedra.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Flores roxas e outras quadras




9. FLORES ROXAS

As flores roxas do jacarandá
sorriem com o sol da primavera.
São cálices voltados para a terra,
com tudo que lhes resta da beleza.


10. LANCEM AO MAR

Lancem ao mar o meu corpo morto.
As águas o trouxeram, as águas o levarão.
O pouco sangue sobre as pedras
será uma rosa para Deus.


11. ESTOU MORTO

Estou morto no sonho da vida.
Procuro a minha carcaça queimando no ocaso.
Ainda sou um belo espetáculo.
A morte continua justificando a vida.


12. OS PÁSSAROS

Os pássaros estão mudos.
Voam, revoam, sombras inúteis.
Lembram os anjos que nos protegem;
logo serão estátuas frias no cemitério.


13. A MONTANHA

A montanha brilha ao sol poente
me indicando o caminho do pinheiro além-horizonte.
Eu sigo decidido, com toda a certeza do mundo nos olhos:
não importa o que vá encontrar.


14. TROUXE A MORTE

Trouxe a morte numa colher,
levou-a aos lábios com sofreguidão
como quem toma um prato de sopa.
Depois sentiu engulhos diante do abismo.


15. COMO TARTARUGAS

Somos uma raça esquecida.
Como tartarugas corremos para o mar,
inutilmente. Os cascos enfim virados para cima,
bebemos o vinho do sol.


16. A ARGILA

A areia fluía da minha mão. Sob os meus pés,
a argila tinha a consistência da carne do homem.
Olhei o céu, a terra, o mar azul.
Aprendi a palavra morte.

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segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A torre e outras quadras




1. ESTOU SÓ

Estou só, no coração da dor.
Exposto, desolado
ao sol, à chuva, à areia do deserto.
Quando menos espero, cai o frio da noite.


2. OS FIGOS

O amor é tudo e nada.
Os figos estouram ao sol.
Estou dentro do teu corpo
como num poço sem fundo.


3. A TORRE

A torre da igreja aponta para o céu.
Cai o crepúsculo nevoento.
Um raio me ilumina a face dura.
Sou um homem voltado para a terra.


4. DEUS CARREGA

Deus carrega o mundo na palma da mão.
O sol queima a areia do deserto,
está seca a garganta dos camelos.
Eu sou uma sombra que passa.


5. ESTOU NU

Estou nu diante de Deus.
Sou pó na imensidão infinita,
o meu coração dispara de medo.
Existir é uma bênção.


6. TENHO UM ESPINHO

Tenho um espinho no olho direito,
mas o esquerdo vê pelos dois:
o córrego de lírios amarelos
e águas claras fluindo como a vida.


7. QUEBREI AS LÂMPADAS

Estou cercado de fantasmas e do nada.
Os mortos não precisam de luz, nem os vivos.
Quebrei as lâmpadas, afoguei a última chama.
No escuro a minha solidão é maior.


8. QUEBREI A PEDRA

Quebrei a pedra, tirei todas as arestas
até ficar como a minha cara feia.
Era uma obra de arte acabada:
só não tinha a minha alma, era um espelho da tua.

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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

João Cabral de Melo Neto - dez anos




JOÃO DE PEDRA

João de pedra sentado no cais do Recife
lembra a sua poesia de pedra e água contida,
o sentimento mínimo no equilíbrio ígneo
exposto ao sol e ao sal marinho corrosivo.


EQUILÍBRIO

A palavra tem o equilíbrio da pedra
mesmo se ave no ar ou água de rio
e ao mesmo tempo tem sangue de objeto
e principia quando se lhe aparam as arestas.


A MULHER TEM

A mulher tem pinheiros na língua
e o princípio da noite, como um rio,
a forma líquida da água nos lábios,
margem circular de madeira ou limo.


A PALAVRA É SUBTERRÂNEA

A palavra é subterrânea, como um peixe
ou alga no espelho côncavo do oceano.
As pálpebras da imagem situam e limitam
o objeto anfíbio bebido como um teorema.


A PALAVRA ARDE

A palavra arde e escande a promessa da rosa,
tigre no voo e vertigem nas árvores do crepúsculo.
O seu nascimento coroa o incêndio da paisagem
sobre a cinza das ideias, mínimas e consequentes.


A BAILADORA ANDALUZA

A bailadora andaluza esconde, mais que revela,
o que vai mostrando, quando se despoja, não das vestes
mas do ser, exposto ao sol, tão nítido que não se vê.
É a imagem da poesia, que transcende o objeto.


JOÃO CABRAL

A cabra resiste
comendo pedra.

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Hoje é o aniversário dos dez anos da morte de João Cabral, o mais importante poeta brasileiro, que legou a consciência crítica ao fazer poesia entre nós.

Tenho me exercitado em elaborar poemetos em forma de quadras; acho que essa forma fica bem para homenageá-lo. O último poemeto, já publicado entre meus Exercícos de Admiração, achei que ficaria bem repetir aqui.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Homenagem a Mercedes Sosa




A primavera e suas pombas brancas
em meu peito inauguram uma flor.
A esperança se eleva em grito e luz
até o sol, num cântico de júbilo.

Contemplo a vida, o vértice do tempo:
seu brilho azul, o justo caminhar
de coisas e homens plenos de certeza,
na ordem da palavra renovada.

A estrada aberta para a paz dos olhos
cansados da procura de horizontes
onde repousem dos trabalhos áridos:

a luta contra as urzes do destino,
as cadeias do efêmero, e a angústia
presente sempre e sempre combatida.

Exílio, 1983.

domingo, 4 de outubro de 2009

Visita à nascente do São Francisco




Dois filetes d’água
e as pedras.

A água desliza na canastra de Minas,
canastra de pedra.

Um tamanduá abre os braços no caminho,
um gavião carcará vigia o horizonte,
um galito move o leme minúsculo,
um lobo guará sobe num monte
de pedras.

Tudo são pedras.

As pedras
e a água subliminar.

A casca da anta entre as pedras,
a água entre as pedras
e um pulmão explode
no ar.

A água de pedra
líquida
voa no ar
e corre entre as serras
de pedra.

E vai o Chiquinho
e doa
e abençoa.

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Visita à Nascente do São Francisco é o rascunho-plano de uma longa crônica que postei aqui há dois anos e pouco narrando a minha viagem à nascente do rio São Francisco. Humilde como o rio que vai nascendo e como o São Francisco que comemoramos hoje, ficou esquecida. Penso que a sua simplicidade vale a pena de ser apreciada.

Ah, essa foto foi batida na nascente do Chiquinho.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dois poemas




A MOEDA DE SILÊNCIO

Nos olhos cinzas de névoa
A moeda do silêncio.
Os pássaros petrificados
Nas árvores secas.

Os sapatos à beira da estrada
À espera dos pés de ninguém.
Uma fina lâmina de vidro
Quebra-se.

Deus de areia, noite escura
De Deus.
Uma lâmpada sem óleo,

A luz negra,
A chave enferrujada
E a pátina no chão do deserto.


ESTRANGEIROS

Era madrugada e velávamos.
Descemos a montanha com o peito deserto.
Estranhos como deuses.
Nem sabemos o nosso próprio nome.

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Dois poemas de O Silêncio de Deus. A Moeda do Silêncio foi o último escrito, e Estrangeiros é um dos primeiros, feito há uns 30 anos - é um poema que resistiu ao tempo, continuo prezando muito, vendo nele um estranhamento (faz jus ao seu tema) que o torna especial.

A foto é das falésias do Beberibe, no Morro Branco, de quando fomos a Fortaleza, em abril deste ano. É o mesmo lugar onde bati a foto da capa d' O Silêncio de Deus.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Imanência e transcendência na poesia do mestre Brandão


capa de O Silêncio de Deus, 2009.


IMANÊNCIA E TRANSPARÊNCIA NA POESIA DO MESTRE BRANDÃO


Prefácio de O Silêncio de Deus, de J. C. M. Brandão, por

Luiz Vitor Martinello*


A Poesia brota dos dedos de Brandão. E como disse certa vez: “palavras que são coisas, com o saber de experiência feito, com os mestres, a quem chamamos clássicos, aprendida.”

A Poesia brota dos dedos de Brandão, iluminada: “pau, pau e pedra, pedra; ou bichos, árvores, terra e sangue.” “O poeta não escreve para dizer coisa nenhuma” – afirma com convicção – “mas para fazer”. E citando Ionesco: “entregar mensagens é trabalho do carteiro.”

O poeta não escreve para dizer coisa nenhuma, mas para fazer. Para fazer-se? Ao fazer seus poemas, Brandão faz-se. E mais: faz outros poetas quando, ministrando um curso de poesia, sugeridas as palavras “olhos, água, caminho, pássaro, flor, mesa “– ele que é prestidigitador delas – escreve, ensinando o caminho das pedras, que burila como só o fazem os verdadeiros poetas:

olhos
no caminho

uma flor
na água

um pássaro
sobre a mesa

Já em sua primeira obra, O Emparedado, Brandão anunciava sua procura: “na pedra mais dura / forjar um estilo” em busca da “palavra mais pura”.

Intrometo-me em um de seus poemas, recorto-lhe alguns versos (pura heresia) a substância em minhas mãos, plena, cantiga de enamorados, numa dimensão outra, inefável, candidamente erótica, magia absoluta:

Você olhava o sol poente.
Você queimava.
Eu não olhava os seus olhos,
seria a perdição.
Eu segurava os seus seios,
queimavam.
Maçãs encarnadas
pulsando, derretendo os meus dedos.
Candelabros
iluminando a noite.

Aliás, já em Emparedado percebemos a variedade de formas de que Brandão se ocupa em seu ofício, cada poema como pedra preciosa exigindo particular artifício: redondilhas, decassílabos, alexandrinos, oitavas, sonetos, tercetos, dísticos, aliterações, e também versos brancos, rimas consoantes, toantes, e estrofes que são verdadeiros haicais:

Por breve momento:
O tempo não era o tempo:
de tão antigo.

Em seu segundo livro Exílio, dê-se registro às palavras de abertura: “Por toda a grandeza do universo, do tempo ou do amor, eu quis a mágica da ascese, um vôo secreto na febre do sangue. O poeta sonha a forma do espírito”.

Suponho, ao ler esse fragmento, que Brandão conceba dois mundos: este - o da nossa miserabilidade, um exílio desgraçado, no sentido de termos sido desprovidos da graça (não somos anjos caídos?) e o de nossa origem, qual o mundo das idéias de Platão - ao qual ansiamos por voltar. São palavras do poeta em Exílio:

Dura mão abateu-se sobre nós.
Feriu—nos, castrou-nos.
E somos pobres como o olhar de um animal acuado.

Por isso o poeta assinala:

Não durmo. Duro
na noite em que me encontro
de mim ausente.

Ou, numa variação de imagens, o mesmo:

Um piolho
Mil piolhos me roem
O cérebro. Em frangalhos
Serei eu mesmo, o que escreve
Ou o que vive o estupor?

Só a ascese nos devolverá o Paraíso perdido, só a Arte pode, desejando criar o Belo, nos dar momentos de transfiguração, de transcendência para além desse mundo de sombras e espectros. Assim, para Brandão cada poema é uma elevação da alma, sua construção funcionando como um exercício de ascese, de elevação do espírito, uma verdadeira simbiose entre o aperfeiçoamento do poema e da alma.

No livro Poemas de Amor (que tem na contracapa um poema a mim ofertado, sempre meu muito obrigado, caríssimo Zé) parece-me que Brandão tirou umas férias dessa existência sacrificial, assumindo despudoradamente o cotidiano mais prosaico, e paradoxalmente, contente dele, elevando-o à mais alta poeticidade, talvez por que, escolhido o Amor como tema, seja este o único resíduo de nossa contingente e abatida divindade a nos possibilitar algum alento de antevisão do Eterno:

O amor ordena a casa apagada,
a mesa, o fogão, a cama aconchegante,
a fogueira à beira do lago,
os nossos corpos unidos,
a nossa alma que se eleva.

Ou:

Um dia você tirou a roupa,
eu abaixei os olhos.
Você tirou o corpo, me deu.
Eu me ajoelhei.
[...]
E o espírito de Deus pairou
Sobre as águas.

Sabedor, agora, de outro caminho, o da Plenitude (“os amantes cruzam o umbral do tempo: em breve seremos eterno”s) Brandão já não mais recrimina este mundo; faz mesmo dele ante-sala, tempo de espera e com ele se compraz:

Deus pasce do alto.
A ovelha bale fora do aprisco
e volta.
O mundo é grande
e calmo cristal
onde brilha a face de Deus.

Há mesmo em seus últimos poemas (ainda inéditos em livro) uma complacência serena e sábia com este mundo em que:

As siriemas bicam o dia
na porta
da cozinha.

Essa antevisão da Plenitude aqui e agora na mais cotidiana realidade é reveladora definitiva da ascensão do poeta, já então estranho aos mortais comuns:

A luz me libertou da pedra.
Atravessei o rio subterrâneo,
atravessei o túnel escuro.
Cego de tanta luz,
eu me prostrei: Estou pronto, Senhor.
Quando me levantei,
era mais um estranho na terra.

Dessa estranheza sagrada de que é feita a alma dos grandes poetas.

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*Luiz Vitor é o poeta mais conhecido de Bauru, autor dos livros de poesia “Mãos nos bolsos”, “Os anjos mascam chiclete”, “Lixeratura”, “Me apaixonei por mim mas não fui correspondido” e dos infanto-juvenis “O sapato que sabia andar” e “O penuginha”.

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Peço desculpas aos amigos, elogio em boca própria é vitupério, mas eu não pedi ao Vitor para falar bem de mim. Já que ele escreveu, eu mostro.

O Vitor fez este ensaio há uns dois anos, mas cabe bem como prefácio de O Silêncio de Deus.

O Vitor foi generoso demais, chega a chamar-me de grande poeta, porque é meu amigo, mas também soube captar o que há por trás ou por dentro do que escrevo: a ânsia de transcendência.

Estou lançando O Silêncio de Deus pela internet, com impressão sob demanda, um tipo de edição que chegou ao Brasil somente neste ano.

Quem quiser adquirir um exemplar, basta fazer o pedido que o seu livro será impresso em São Paulo e, dentro de 5 a 10 dias, chegará pelo correio.

O grande problema da poesia é a falta de divulgação. Com este método, os livros poderão ser bem divulgados em blogs e sites.

Quem quiser conhecer mais, pode clicar no título deste texto – Imanência e Transcendência... – ou na barra à esquerda do blog.

Um grande abraço.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Ipês




Os ipês estão floridos como nunca.
É inverno, mas todos os ipês gritam.
Tanta vida na claridade do dia.
Flocos de paina brincam com a brisa,

a beleza breve me veste de alegria.
Quatro garças brancas na copa das árvores,
ao longe, como a imagem da quietude.
Os ipês estão carregados de pássaros

e cálices de flores que gritam.
Um cachorro late como o meu coração.
A claridade é o nome da beleza.

Os pássaros maduros pingam mel;
o sol, como um cálice, pinga luz
do alto dos ipês que gritam como nunca.


Presença da Morte, 1991.
_________________________

Não era minha intenção mostrar textos antigos, principalmente se já publicados. Mas ninguém viu esse livro, apesar do Prêmio da Bienal Nestlé. E não resisti à tentação de comemorar a Primavera - apesar de estar chovendo, de esfriar à noite... Os ipês são mesmo árvores que florescem no inverno, antecipando a Primavera, indicando a passagem de uma estação à outra.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A estrela da noite - poemetos




A ESTRELA DA NOITE

A estrela da noite,
branca e vermelha,
sorri para a cidade.


DILÚVIO

Espero um dilúvio
para inundar a minha garganta
seca de Deus.


ALVORADA

Quebrem as garrafas!
Quero um banho de luz verde,
quero me afogar no sol.


A ESTRELA DA MANHÃ

A estrela da noite
lívida, quase sangrando,
nasceu de manhã.


ESTRELA MORTA

Perdi a noite e a vida
contemplando uma estrela
que já morreu.


TERMÓPILAS

Depois do deserto,
depois do desfiladeiro,
o mar é belo.


ECLESIASTES

Vaidade das vaidades.
O jardim das delícias
e a morte do sol.


SARÇA ARDENTE

Montanha deserta.
Pássaros caem
com o sol.


ARANHA

Vou urdir a teia
em sua trama dourada.
Sou aranha-enigma.


CRIAÇÃO

Pensei uma rosa
no deserto escuro.
Floriu na minha mão.


ALIANÇA

Não comerei rosas,
não beberei vinho
no rio eterno.


BOSQUE

Na trilha do bosque
abraço o velho pinheiro,
que me abraça.

_________________

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A iluminação dos poeminhas caindo na ampulheta




AMPULHETA

A areia na ampulheta não para.
Cada vez mais vazia
a praia.


ÁRVORES

a areia leve
o mar desenha árvores
passarinhos voam


SABEDORIA

Agora já não tem pressa.
Agora está com a boca
coberta de terra.


ESCURO

a areia cai no escuro
ninguém vê o tempo
ninguém vê o mar


O SAL DA PAISAGEM

As ondas do mar
e a música do silêncio
na areia da praia.


GRITO

Os olhos das crianças
assassinadas na rua.
Um grito de vidro.


ÓRFÃS

as crianças uivam
estranguladas
para uma estrela


CEIFA

A língua canta
os olhos no espinheiro
como flores do abismo.


PAISAGEM URBANA

cidade arrasada
trapos sangrentos
cadáveres de ninguém


PÉROLAS

pérolas nos olhos
asas loucas do mistério
vêm e vão na brisa


O GIRASSOL

Por que gira o girassol?
A terra gira porque o girassol gira,
o sol gira nas hastes do girassol,
o universo inteiro gira porque o girassol gira.


SUCATA

Uma rosa sangra.
Poesia na sucata
apesar da dor.


DOMINGO PEDE CACHIMBO

Há domingos tão belos que até os cachimbos florescem.


PUREZA

Chovia na vidraça e nos meus olhos.
A minha face estava pura como um coração.
Os pássaros de Deus semeavam margaridinhas na minha língua.


O TRIGAL DE VAN GOGH

Os grãos de ouro explodem.
Vincent corta a orelha, fura os olhos
em êxtase com tanta cor.

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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O êxtase da poesia


Santa Teresa d'Ávila, de Bernini

Escrevi num poema (Poética Essencial, 2008) que eu “Escrevo para entrar em êxtase. / Escrevo para ver Deus.” Muita pretensão? Ninguém diria isso se São João da Cruz ou Santa Teresa de Jesus, grandes poetas, além de santos, tivessem escrito esses versos. Santa Teresa dizia que se policiava para não entrar em êxtase, que, por qualquer descuido, sentia-se transportada, pela força da oração, para fora da realidade. E São João da Cruz era o enorme poeta da Mística, que cantou as núpcias da alma com Deus.

Todavia não é outro o poder da poesia, a sua função é, em primeiro lugar, encantar, não pelo encanto em si, mas para, pelo encantamento, iluminar, extasiar, levar-nos a transcender a nossa pobre realidade. Não usei o verbo “extasiar”? Um verbo que usamos comumente para dizer que estamos encantados, iluminados, extasiados pela poesia. Extasiados, isto é, em êxtase.

A função da poesia é fazer-nos entrar em êxtase. É levar-nos a atingir a transcendência. O que é o Transcendente, em última instância? Deus. Por isso escrevi o nome Transcendente com maiúscula, porque estava escrevendo o nome de Deus. Por isso registrei que “Escrevo poesia para ver Deus.” É a pura e simples verdade. Ver Deus pode não ser tão extraordinário.

Li e reli várias vezes o capítulo “Êxtase em Óstia”, das “Confissões” de Santo Agostinho. Queria ver o que haveria de extraordinário nesse “Êxtase”. Santo Agostinho elevando-se do chão em companhia de sua mãe Santa Mônica, inebriados do amor de Deus, como se já não pertencessem a este mundo vil? Sem peso, etéreos, duas almas, dois corpos gloriosos, triunfantes, libertos das contingências da carne? Nada disso se via, nada de fora do normal estava acontecendo, nada do que achamos que é fora do normal. Apenas a mãe e o filho recém-convertido contemplavam a natureza de Deus.

Agostinho e sua mãe contemplavam a natureza, a beleza da paisagem, a criação maravilhosa de Deus. Não eram mais do que duas pessoas comuns olhando a natureza, encantadas, extasiadas com a poesia que viam no jardim e além, até o mais distante que poderiam imaginar. E esse mais distante que poderiam imaginar estava próximo, estava ali ao lado deles, mais do que isso, estava dentro deles. Compreenderam que o Criador, esse Ser tão distante, completamente inconcebível, estava ali junto deles, dentro deles.

Escrevi sem querer, mas acertando, que Agostinho e Mônica contemplavam a natureza de Deus. Eu me referia à beleza da paisagem que olhavam, que os rodeava. De fato o que Agostinho nos conta no seu “Êxtase em Óstia” é que ele e a mãe viram Deus. Não viram a natureza verde do jardim ou o infinito dos espaços azuis a se perder de vista, mas viram a natureza de Deus. Agostinho, quando escrevia, era poeta – e contou, com a mágica das palavras, como viram Deus.

Concordo que é muita pretensão, ver Deus. Mas qualquer conhecedor de poesia sabe que a sua função é transcender a realidade, é ver o invisível, é iluminar a noite escura da alma. A função da poesia é dar a ver Deus.

Não é preciso ser santo para ver Deus. É preciso ser poeta.

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sábado, 12 de setembro de 2009

Sinfonia




Ela veio com os lábios abertos, o coração
com muita sede: os morangos eram vermelhos
de urgência, o sangue derramado do pássaro na mão.
Nós nos amamos sem a palha das palavras:

queimavam os corpos largados, a polpa explodia
dentro do espelho. Nós éramos amantes na praia
da meia-noite: o motor de popa, as hélices, a lâmina
do amor girava, cortava em fatias o desejo.

Ela se foi com os girassóis da madrugada,
pisando a terra vermelha das plantações,
a memória de quando éramos outros e ninguém.

Ela se foi para as águas e as colinas do cristal alado.
Na minha língua vai florindo a flor da loucura.
Com o mel do mito componho a sinfonia do absoluto.

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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A ponte impossível - pintando o sete




A PONTE

Sei que a poesia
é uma ponte impossível
com a luz à frente.


MATINADA

A casa quieta
acorda com os pássaros
à beira do lago.


LAVRA

Lavro a palavra,
planto a imagem,
germina o poema.


TÃO PURINHO

Pinto o paraíso
na porta da minha casa:
a cobra e a maçã.


ANTIPREGÃO

Não faço um poema
para vender na feira.


PREGÃO

Faço o meu poema
para encantar
a gaiola e o pássaro.


CANGA

Com a canga no pescoço
o homem mói a cana e o tempo
sob o céu azul.


ERGO SUM

Penso com imagens
fora do lugar.
Sou poeta.


CAVE CANEM

Nas Ilhas Canárias
os cachorros voam
e cantam nas árvores.


NO MEIO DO CAMINHO

Tinha uma pedra na mão.
Jurava que era um pássaro,
mas voou.


COGITUR

Borges, Homero e Milton eram cegos.
Logo, para ser poeta
é preciso ser cego.


POENINHO

Faço o meu poeminho
para o meu passarinho
no ninho.


CAVE POETAM

Na Casa do Poeta
em Pompeia, a inscrição:
CUIDADO COM O CÃO.


QUOD SCRIPSI, SCRIPSI

O que escrevi, escrevi.
Depois corrijo, emendo, rasgo e queimo.
– Se alguém mais fizer isso, leva uma patada.


MAIS UM

De gênio, poeta e louco
todo mundo tem um pouco,
muito pouco.
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Brincadeirinhas. Em frente à Casa do Poeta Trágico, na Pompeia destruída pelo Vesúvio, lia-se numa tabuleta: CAVE CANEM, cuidado com o cão.
Nas Ilhas Canárias, que têm esse nome não por seus belos pássaros, mas por suas matilhas de cães selvagens, foi brincadeirinha.
Mas não posso deixar de lembrar a frase de Elias Canetti: “O poeta é o cão do nosso tempo”. Então, não é só brincadeirinha.
Adorno se perguntava se a poesia ainda seria possível depois de Auschwitz. Pois é quando é mais necessária. Porque a função da poesia não é enfeitar, mas iluminar. “O poeta é o cão do nosso tempo. “
A poesia é um jogo, mas não inocente, nunca se joga impunemente.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Lenda de São Julião Hospitaleiro, segundo Flaubert




1

Julião ouve a maldição do veado:
“Matarás o teu pai e a tua mãe.”
E toda uma vida carregou
essas palavras nos ouvidos loucos.

Foi o guerreiro vil do desespero,
matou por reis e príncipes e damas.
Premiado com a mão de uma donzela,
vive feliz sem mais caçar, jamais.

Mas ele vai caçar, e é perseguido
pelos animais, pela maldição.
Volta nas mãos da angústia para casa

e mata em sua cama o homem deitado
com a sua mulher, sem saber que eram
o seu pai e a sua mãe – e a maldição.


2

Julião atravessa os viajantes
no seu precário barco, sobre o rio
terrível, por qualquer côdea de pão.
Cumpre a pena do seu pecado infame.

Um dia ouve o chamado entre as ondas,
era um leproso sob as trevas frias.
Julião leva o homem para o outro lado,
dá-lhe comida, dá-lhe de beber,

aquece-o com seu corpo, na sua cama.
Encosta bem o corpo ao corpo nu
para esquentá-lo – é tão gelado o pobre!

O pobre que abraçou, com as estrelas
nos olhos, a Julião extasiado
era Jesus que o arrebatava aos céus.

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Isto é apenas um exercício, e um convite aos meus queridos leitores: releiam o conto São Julião Hospitaleiro, de Flaubert. Agora que relembraram a história, vejam o trabalho de linguagem de Flaubert - comprovando, agora e sempre: literatura é linguagem.

domingo, 6 de setembro de 2009

o haicai ensina que a beleza não morre



a coroa de gladíolos
em volta do chafariz
muros de musgo caem
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o mar era azul
nós dançávamos na chuva
árvores ventavam
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o lagarto de vidro
como uma cobra verde
desliza na água
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cicio da ramagem
murmúrio da fonte
sossego noturno
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nesse momento
ouvindo a noite
sou eu o mundo
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no tronco da árvore
o ninho pequeno
quatro bocas aflitas
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a clara paisagem
na moldura da janela
canta um bem-te-vi
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entre o musgo verde
o lírio roxo se inclina
para a água gelada
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o sol poente
tece as nuvens
com sangue
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a beleza
flor da morte
não morre
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as flores de limão
as abelhas zuniam
perfume doce
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nascemos doendo
a angústia escura
a luz cega
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coroada de sol
a nuvem iluminada
orlada de ouro
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mais luz mais luz
a miséria não tem fim
vejo Deus no azul
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carda e fia
doba e tece
e morre
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a beleza dói
como a sombra de Deus
sobre o universo
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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

a nudez de algumas piscadelas parecidas com haicais



NUDEZ

Nasci nu de espanto
com o mistério da vida.
Mais nu morrerei.
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o quero-quero
diante da água correndo
bebe o verde
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A água pisca para o sol
ou o sol para a água?
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que claro mar
tantas gaivotas
seu grito branco

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a lua caiu
no fundo do mar
em silêncio
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o orvalho
doce nos olhos
memória
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uma flor
no focinho do porco
infância
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tirei o espinho
da perna do cachorro
choramos
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tinha o silêncio
na palma da mão
brilhava
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deitou-se na cama
como no fundo da cova
à espera
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o morto sorria
como se não soubesse
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a borboleta beija
as pedras da rua
como beija a flor
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um pássaro azul
canta na beira da estrada
vai morrer
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a flor do ipê
é um cálice
de cor e luz
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as abelhas
giravam loucas
sobre o girassol
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a aranha tece a teia
da árvore até a água
numa réstia de sol
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num canto da calçada
na noite morta
a pombinha dorme
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quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Epifanias do exílio – a Miroslav B. Dušanić



EXÍLIO

O cheiro de cipreste
lembra o esquecimento.

Vem do Norte
o frio da aflição.

As canções das laranjeiras floridas
viajam nas asas das andorinhas.

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SALMO

Logo será meu tempo:
o que eu tenho de céu
brilhará
sob as raízes das árvores.

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ELEGIA

O leve chuvisco das minhas lágrimas
molha a terra com doçura.
Aumenta a minha dor.

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ESTRANGEIRO

Todos me olhavam como um estranho.
Ninguém entendia a minha língua,
nem a minha angústia.

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AUTO-DE-FÉ

Pus as minhas asas para secar ao sol.
Queimaram.

Restou apenas um punhado de cinza
sob o céu de vidro.

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ENFORCADO

Enforcado no teto da minha casa,
conheço quanto é longa a morte.

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EPIFANIA

Proibido comer estes poemas.
Proibido beber.

São de algum pássaro louco,
são do fogo.

Você poderá, talvez,
ouvi-los uma vez
e depois morrer.

Poderá, enfim, vê-los queimando no fogo
na mesma fogueira
em que você estará se queimando.

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MEMÓRIA BRANCA

Uma faca cravada na parede.

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O primeiro destes poemetos foi comentário a um poema de Miroslav B. Dušanić - http://miroslavdusaniclyrik.blogspot.com/ -
e me sugeriu os outros.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

a roda d'água a roda da vida




INTIMIDADE

Entro no espelho
despido.


FARDO

Levo em cada ombro
D. Quixote e Sancho Pança.


CIPRESTES

Caminho ao longo
da alameda de ciprestes
com a morte no bolso.


PAZ

A rosa no altar
e a luz de uma pomba
sobre a pedra sagrada.


O MAESTRO

O velho carvalho
agita os ramos e acorda
o canto dos pássaros.


VÊNUS

Um busto de gesso
no jardim noturno
com o luar nos seios.


ESPELHO

Nas águas do lago
entre o verde das árvores
o universo refletido.


CLARIDADE

Tinha uma gota de orvalho
e uma orquídea nos olhos.


QUASE

No escuro da pedra
o silêncio de Deus.
Quase entrei em êxtase.


BUSCA

O menino perdido
estava agachado dentro
do pé de ameixas pretas.


A RODA D’ÁGUA

Ao sol de setembro
canta a roda d’água
a música da vida.

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sexta-feira, 28 de agosto de 2009

a iluminação no jardim da tarde - poeminhos com sol, suor, sede e sangue



BRISA

A brisa leve
faz cair as pétalas
das flores de cereja.


SEDE

As uvas estão maduras.
Como é grande a sede
do menino ao sol.


VÔO

A árvore enfuna as velas,
no espaço, com as estrelas.


CINZA

As nuvens cinzentas.
O crepúsculo me espera
sob as árvores secas.


DISTÂNCIA

O horizonte ao longe.
É pesado este caminho
que ninguém percorre.


MARTELO

Na forja da tarde
o martelo da araponga.
Uma laranja cai.


SANGUE

Pitanga vermelha
como uma gota de sangue.
Tenho o sol nos olhos.


PÔR-DO-SOL

A lagarta numa pétala
da rosa no galho.


ALTURA

O sol ilumina
a estrada na montanha.
Caminho com orgulho.


FIGO

A menina na cerca.
O sanhaço azul
bica o figo maduro.


ACIDENTE NATURAL

A lagarta caiu da árvore.
Me manchou de verde
o peito vermelho.


CÁLICES

Cálices de flores
gritam no alto dos ipês.
Pássaros pingam mel.


DESCOBERTA DA DOR

A goiaba vermelha.
Queima o braço do menino
uma lagarta de fogo.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

poeminhos para Aníbal Beça, que nos deixou hoje de manhã



deitado sob a árvore
o prisma das folhas
me entrega o universo

o tronco é grave
como o meu avô
dormindo a sua morte

quanto resplendor
o pássaro me traz o sol
nas asas, no canto

tenho estrelas nos olhos
minha estrada é larga
no horizonte de ouro

O silêncio e o pássaro.
O pássaro ia e voltava.
O silêncio, redondo.

A cor dos açafrões.
Giram no vento as folhas
e o grito dos pavões.

Estamos no outono.
O universo se concentra
numa folha seca.

O olhar se quebra.
Estrelas doidas
sobre o caos.

A madeira estrala.
A noite, como um morcego,
pende do telhado.

O raio partiu a árvore ao meio.
Foi como se o universo
tivesse desabado.

O luar penetra
na minha casa quieta.
Os lençóis são brancos.

A maçã repousa na mesa.
Nela pulsa a memória
da macieira.

É leve o meu caminho.
O perfume de uma árvore
me agasalha.