terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Inventário















O inventário de seus destroços é o melhor poema de Robinson Crusoé. Retorno a essa idéia de G. K. Chesterton porque não vejo melhor diante do inventário deste ano que se finda. É impossível fazer-se o inventário completo de um dia ou um ano. Mais fácil, portanto, fazer dos seus destroços. E mais importante. Essencial. O que sobrou, o que não pereceu é o que realmente interessa.

Álvaro Moreyra diz que nos recordamos com saudades do passado, mesmo que então tenhamos sido infelizes. É uma felicidade o próprio ato de recordar. Nada, quando lembrado, é jogado fora.

Queremos desesperadamente lembrar, mesmo que o excesso de memórias nos sufoque. Como aconteceu com Funes, o Memorioso, de Borges, que lembrava cada palavra, cada nuvem, cada folha de árvore. Mas Funes era um personagem de ficção. A Borges interessava-lhe a memória, como parábola do tempo ou do próprio universo.

Queremos desesperadamente lembrar, como se esquecer fosse uma doença terrível. Como se o Alzheimer nos atacasse em cada pequeno esquecimento, no mínimo desvio de atenção.

O que sobrou de 2008? O que é importante desse ano que passou? A nossa memória é falha, lembramos as coisas próximas, as mais risíveis ou pitorescas, às vezes as que mais nos fazem sofrer. Por que não falar do que houve de positivo? De tudo que construímos neste ano?

Abrir os olhos à luz, respirar o ar puro, sorrir, alimentar-se, sentir o fluxo da vida. O dom da vida, a beleza da vida, essa graça é salva do naufrágio sublimemente. Nem percebemos que o próprio ato de viver faz parte do inventário de tudo de precioso que salvamos, que levamos para o próximo ano. Deus seja louvado pela vida e pela morte, que nos faz sentir mais vivos, que nos faz sentir mais precioso o dom de viver.

Levamos a vida para o ano que se inicia. A vida é o que permanece.

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"O velho está morrendo!", lamentava meu pai todo final de ano. "Quem?", todo mundo perguntava, como se a piada fosse nova. A piada era nova.

Rei morto, Rei posto. Feliz 2009 para todos!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Árvore de Natal


Nunca pude esquecer aquela noite. Era o primeiro Natal depois da morte de Mamãe. Sempre, toda a vida, ela e Papai, de noite, pertinho do Natal, armavam a nossa árvore, com muito carinho, Lininha e eu sentados ao lado. Agora, pela primeira vez, a gente foi cedo pra cama. Eu logo dormi, Lininha me acordou.

– Vamos! Vamos!

– Vamos onde?

– O Papai... Papai foi...

Entendi. Me levantei, fui com ela. Papai tinha ido armar a Árvore de Natal, a gente não ia deixar ele sozinho. Então, os dois bem juntinhos, a gente foi caminhando pelo corredor. Os chinelinhos de Lininha, teque, teque, faziam barulho no soalho. Falei pra ela, ela tirou eles. Estava tudo escuro, muito escuro mesmo. Então a gente foi andando mais devagar, devagarzinho, encostadinho na parede. Tinha uma vaso de avenca no meio do caminho, Lininha bateu nele, e então a gente resolveu ficar ali. Logo, lá no fundo, acendeu a luz. Então a gente resolveu andar outra vez. Apareceu uma sombra, era o Papai. E a gente foi caminhando mais devagarzinho, com cuidado pro Papai não ver a gente. Ele não podia mesmo, estava tudo escuro; mas a gente via bem, que lá na sala, lá tava claro. Tinha um armário no fundo do corredor, a gente chegou ali e ficou bem juntinho dele e da porta. E ali, bem escondidinhos, a gente ficou olhando o Papai.

Ele pegou a árvore, arrumou bem os galhos, alisou tudo direitinho, pôs em cima da mesa, ficou olhando pra ela. Depois se sentou, baixou a cabeça, olhou de novo a árvore, baixou outra vez, fez que assoou o nariz, passou a mão nos cabelos. Ah, a gente gostava de cariciar aqueles cabelos. Eu tava pensando isso, Lininha me chamou.

Olha!

Olha o quê?

Bobo! – ela falou e eu vi que ela tava brava mesmo. Mas logo ela continuou: – Olha! Ele está se levantando agora. Abriu a janela. Você sabe pra onde ele tá olhando?

Pro cemitério.

Psiu! Fala baixo. Papai percebe.

Então era isso! Eu já tava desconfiando que Papai tava chorando. Tava um quadro tão feio o Papai arrumando a árvore, sem a gente perto, sem... sem a Mamãe! Lininha, ela não vai voltar mais mesmo?

– Viu?! O Papai percebeu. Eu não falei pra falar baixo!

Então a gente viu o Papai se voltar e olhar pra gente. E então a gente saiu de detrás da porta e foi caminhando pra ele. Ele cruzou os braços, olhou bem pra gente, parecia que estava bravo. Mas logo ele se baixou, abriu os braços, chamou a gente. Então a gente foi correndo e logo tava os três abraçados. E a gente chorou. Papai chorou. E eu. E Lininha.

Depois Papai se levantou, a gente no colo, e foi pra janela. Apontou pro cemitério, lá longe. Os eucaliptos na estrada subindo pro cemitério pareciam fantasmas, meio pretos, meio cinzentos, balançando-se no vento. A gente não tinha medo, tava quase gostoso. Um ventinho macio trazia pra gente um perfume quente de flor e mato molhado. E a gente olhou depois pra mangueira no quintal. Veio um vento forte e derrubou um monte de mangas. E ficou ventando e ficaram caindo mangas. Depois parou, ficou tudo parado. E a gente ficou pensando, a mangueira era a vida, as mangas que caíam era a gente quando morria.

Mas Mamãe foi devagarzinho, não foi bruto assim – Lininha falou. Mas nem não acabou bem e a gente viu cair outra manga e não tinha nenhum vento, foi suave, bem devagar. Então eu falei:

Mamãe foi assim.

Depois a gente ficou ainda olhando pro cemitério, com uma dor grande, um peso bem pesado no coração. Pspt, bateu uma coisa na janela, a gente olhou, era uma rosa, bonita de vermelha, que se esfolhou todinha. Depois a gente olhou pra lua, ela tava coberta com muitas nuvens pretas, parecia que tinha um véu de viúva. Parecia que a gente via lágrimas caindo dela. Parecia que ela chorava com a gente a ausência de Mamãe. Não tinha nenhuma estrela no céu. Ligeiro a lua também sumiu. E então começou a chover. E a Lininha falou:

Tudo tá chorando com a gente.

E tava mesmo. E então o Papai desceu a gente no chão, fechou a janela e começou outra vez a arrumar a Árvore. Pegou os enfeites, arrumou bem direitinho nos galhos, pendurou todas as bolas, as lampadazinhas, de toda cor, e voltou a se abraçar com a gente. Então a gente se levantou, bem seguros nos braços de Papai, e apagou a luz. E tudo afundou numa escuridão bem grande, tava tudo preto. E então a gente procurou o botão das luzes da Árvore de Natal, e acendeu tudo. Como tava bonito! E como tava triste ali sem a Mamãe!

E então depois a gente sentou junto do pé da Árvore, e a gente ficou, os três bem juntinhos, velando a ausência de Mamãe. E tudo chorava com a gente. A chuva. Uma goteira cansada. Aquele passarinho piando, longe lá fora. E a Árvore sobre a gente era como se a Mamãe chegasse ali, ficasse com a gente, e falasse obrigado, gostasse da gente ficar ali.

E a noite foi longe, e veio o dia, e a gente ficou ali, até dormir de cansado, os três bem quietinhos, bem juntinhos, velando a ausência de Mamãe.


(conto de 1965, publicado na revista "Allere Flammam" do Seminário Santa Teresinha, de São Manuel, SP.