sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Dentro da noite verde


Andamos dentro da noite quente, da noite verde, ouvindo os barulhos do escuro verde e quente. A Sônia queria fotografar a lua refletida nas águas do rio Tietê, e lá fomos nós através da longa ponte. Temerosos, sozinhos na ponte solitária. Como dois bichos, disse a Sônia. Como deuses, digo eu, que sou mais pretensioso.

É normal dos bichos a solidão escura. Interessante, indescritível: ouvir os barulhos da noite. As vozes, a estranha linguagem da noite. Porque a noite falava. Distinguíamos as cigarras, os grilos, mas ouvíamos mil outros sons – articulados, essa estranha linguagem. Não exagero ao dizer “mil outros sons”: uma infinidade de sons nos acompanhava.

Pássaros noturnos, que nos estranhavam. Vimos claramente visto, apesar do escuro, dois quero-queros nos enfrentarem: estávamos em seu terreno. Mas muitos outros pássaros não vimos: sabemos que fomos vistos e estranhados. Falamos dessa estranheza da noite: nós é que éramos estranhos. Nós, bichos da cidade, é que não estávamos no nosso elemento.

O gerente do hotel à beira rio nos animara: poderíamos caminhar à vontade, a ponte é monitorada, não há perigo. Alguma cobra poderia cruzar-nos a frente, mas não havia perigo. Não houve perigo. Houve maravilhamento.

Não vimos a lua refletida nas águas negras, lá embaixo, invisíveis. Vimos o brilho da lua multiplicado, num rodamoinho a um canto da ponte, multifacetada, como estrelas líquidas dançando nas águas inquietas, violentas e doces.

As águas iam e vinham, quebravam-se nas pedras, com estrondo. Longínquas, quase inaudíveis. Quase: nós as ouvíamos mais com a imaginação.

A Sônia fotografou a lua entre as árvores. Como a lua não veio mirar-se no espelho das águas, nós a contemplamos no espelho do ar da noite. Entre as árvores. Foi quando soubemos que a noite não é negra, mas verde. As fotos, batidas no escuro, deixam-nos ver o verde, nítido, forte, vívido. Como o verde é verde! Mesmo à noite. Porque a noite não é escura, mas verde.

O vento batia-nos nas faces. Havia apenas uma leve brisa, mas eu digo: o vento, o vento escuro batia-nos nas faces, nos olhos, no corpo todo. Sacudia-nos o corpo, talvez a alma.

O corpo não se mexia com essa brisa suave, esse ar quase parado. Mas a alma! A alma entrava em êxtase, eu diria, se o êxtase não fosse para os santos, em situações excepcionais. Não somos santos, mas vivíamos uma situação excepcional. A alma projetava-se para fora do corpo, com esse ar parado.

Filmei a Sônia caminhando no escuro: não se vê nem a sua sombra escura, a imagem de um fantasma caminhando. Mas ela está ali. Assim é a existência da alma: ela está ali.

No meio da ponte, entre o céu e a água, nós estamos perto de Deus. Por isso eu disse que éramos como deuses. Um fio muito tênue ligava-nos a Deus.

A alma estava ali. Levava-nos, num lance mágico, para perto de Deus.

Um fio muito tênue e firme, firmíssimo, ligava-nos a Deus.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

O navio dos mortos

O navio dos mortos deixa o porto

À deriva, entre os calhaus


Uma estrela doente cai do céu

Agoniza na areia da praia


A fuligem das chaminés inunda o mar

E a minha garganta


Ajoelhado em folhas de sal

Acaricio a ossada do último cavalo


Os olhos secos afastam-se na bruma

São como um farol dançando no rochedo


Ergo o cálice de ouro negro

E bebo o vinho da dor


Os dedos sangrando seguram a linha

Da pandorga do eterno.


quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Chão de passarinhos

E me beijei de sol, me salguei com as andorinhas

E o guaxo era preto e era vermelho


Era vermelho e revoluteava como um diabo coxo

O sapo dá uma cambalhota e assopra


Cachimbo de sapo nunca se apaga

Sapo mija atrás da moita


Abre caminho para boi, para boiada passar

Sapo gosta de pau e pia-piou folharada d’água


Pó de pau, cupim, caruncho chamando o boi sozinho

Fazendo o sol arrebentar


Capivara fabricava chão por onde meu umbigo rastejava

Eu sou esse chão de passarinhos


Venho comer na minha mão, venho beber água no meu umbigo

Quebro uma e duas garrafas e o demônio se escapa


Nas asas do guaxo que redemunha e redemunha.


Sol no umbigo

Eu tinha um sol no umbigo cheio de passarinhos

A cobra rasteja com as perninhas nervosas


Para debaixo de mim

Eu era um lambari sentado no alto de uma árvore


E cantava tangendo as cordas da viola

Com os passarinhos me acompanhando


Eu nadava vermelho com o sol incendiando o rio

Capim-gordura pegava fogo, passarinhada despencava do céu


Meu umbigo era um ninho vermelho de guaxo vermelho

Estuprado de marimbondos


Pegava o vento como um peixe pelo rabo

A cara colada no chão ouvia o vento vindo


Ouvia o vento indo na terra verde

Com as perninhas tortas como uma cobra apressadinha.


O espelho do tempo

A vaca Moela e o bezerro Bito babujam o sonho
Sonhado da infância até agora

O ribeirão não tinha peixes
Tinha lágrimas na areia e nos espinhos do barranco

Onde um pé de cabeça-de-negro se dependurava
A morte sorria como uma orquídea

No alto de um jacarandá
A esmeralda brilhava numa pétala de sol

No fundo do poço, a minha face
Degolada pela guilhotina do espelho do tempo

A minha face vai e vem, vem e vai continuamente
Como um pêndulo sem fim

Os cavalos, no alto das patas traseiras, relinchavam
Traziam o sol nas patas e relinchavam e cantavam.

A madeira estrala no eterno

Os meus olhos desmoronam com os telhados,
As teias de aranha, os morcegos e as raposas

A estrada se esfarelou no horizonte
Com as nuvens e as fogueiras do anoitecer

As formigas levaram as folhas das roseiras para nunca mais
Eu quero o verde, o verde, o verde

Eu quero o sol, eu quero o azul do céu
Eu quero subir a árvore do tempo

Na montanha em chamas da infância eterna
As escadarias apodreceram

Mas a minha árvore é sempre verde
Acendo a fogueira na casa desmoronada

Com as pedras de fogo dos meus olhos
Os olhos do meu pai estão nos meus olhos

Os meus olhos estão nos olhos do meu filho
O fogo queima a madeira, que estrala, rubra, no eterno.

A bilha quebrada


Outra vez te revejo, Dois Córregos, mais uma vez

Caminhamos lado a lado como dois estranhos


Não me reconheces e eu não te reconheço

Mas o mesmo sangue corre nas nossas veias


A mesma estranheza aos olhos de fora, tão outros

A mesma alma nos habita, como uma casa muito antiga


Os seus fantasmas esquecidos passeando pelos corredores

O menino que fui, homem de barro, cacos pelos caminhos


Tudo foi dado ao menino e tudo tirado ao homem

Mas permanece, pulsando dentro, como boa paga


Estendo a mão aberta, vazia. Somente eu sinto o peso

Do homem que ela carrega, um tição queimando na noite


A terra vermelha e a árvore verde cantam com todos os pássaros

Eu sozinho, menino e homem, como uma bilha quebrada


E com toda a inteireza de ainda ser bilha, no espaço

E na terra, matéria humana e quase divina.



As brumas do eterno


Dois Córregos sou eu e meus fantasmas envergonhados

Os paralelepípedos sérios, conversando nas esquinas


À sombra dos lampiões da fábula, com óleo inextinguível

Uma vez vi um lobisomem sobre um muro, tinha dentes de bicho


E vergonha de homem. Fugimos devagar, um olhando para o outro

Na rua as sombras dos parentes mortos dialogando no escuro


E se apalpando para ter certeza de que estão mesmo mortos

O saci-pererê não andou por aqui, nem a mula-sem-cabeça


Nem o unhudo da Pedra Branca e suas jabuticabas bravas

Andou por aqui o meu avô e, antes, o meu bisavô João Ventura


Que abriu o sertão de um mato enorme, que chamou de Matão

Virou uma fazenda, multiplicada para os descendentes, amém.


Dois Córregos é o meu pai caminhando com os mortos no bolso

Orgulhoso daqueles mortos todos, que vieram povoar esta terra


E agora dormem com ele, refestelados nas brumas do eterno.



Pombos caem


Pombos caem do céu

Como frutos estourando de maduros


A infância era azul, sem lápides

Os guizos da cascavel me encantavam


Nos ladrilhos quadriculados da varanda

Eu sonhava com a árvore dos dias


No jardim os gerânios vermelhos dançavam

Os copos-de-leite cochilavam


Nos canteiros de sombra

Os sabiás empurram as raízes da paisagem para agora


O mel inunda o pomar tranqüilo

Na roseira do êxtase um pássaro canta


Eu sonhava na varanda, no quarto

No alto do telhado eu sonhava.


Oficina da quietude


Morte, qual é o teu nome? Enguia, centelha?

Conjuro a preguiça da relva


A aranha tece a agonia com um grito além-cinza

Quebro a faca no escuro do poço


Quero a palavra da oficina da quietude

A garça bebe a água do crepúsculo


A morte é pouca para que a luz arrebente

O sapo coaxa, não encontra mais que o eco


Que reza como o pêndulo na noite

E a tesoura retalha e a enxada cobre


O meu cavalo me leva para as invernadas

Para o sol no abismo do mistério


Eu me aninho no ventre azul da luz

Esqueço a razão no corpo que me agasalha.


O monjolo do tempo

O monjolo marcava o tempo na água

O moinho moía a farinha e os galos


O canto dos pássaros bordava o dia

O arado tombava a carne da terra


As sementes sorriam prenunciando a flor e a espiga

A noite me embalava na copa da figueira


Longe os latidos dos cães loucos

Eu me aconchegava no seio da lua


Como no embalo de uma rede e sonhava

Os grilos brigavam com os vaga-lumes entre os coqueiros


As estrelas caíam com o sereno

O leite da madrugada era doce como a vaca Moela


O bezerro Bito mamava com sofreguidão

A Moela e o Bito, eu me dizia, sabem o meu nome.


O útero da terra

A faca da morte decepou a cabeça do carneiro

Sobre o riacho tranqüilo


Esta campa é de ninguém

E sangra nas ranhuras do mármore


Quem pisou na palavra?

Estava nua, porejava leite e orvalho


Quem pisou – para nunca mais?

O mundo caiu


Da figueira, da casa, do poço abandonado

Para onde quer que eu olhe


É morte

E a infância se me escapa por entre os dedos


Silencioso eu me deito na terra vermelha

Como no útero da minha mãe.


quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ofício de poeta

É inútil ficar com raiva do homem

É muito alta a montanha e pesada a pedra


Os olhos são duros, as lágrimas de vidro

Se quebram no espelho envergonhado


Vesti a minha máscara azul

Saí dando pinotes pela rua


As ranhuras na face de madeira

O mundo me ignorava como a um cão


A coleira me esfola o pescoço

Os meus latidos não acordam o sol


As palavras hipócritas na esquina

São o meu osso, o meu trigo, o meu vinho


As águas continuam a correr sob a árvore

É inútil ficar com raiva de Deus.


Resíduo

Os ratos e as baratas passeiam sob o assoalho

Comem o pó dos homens que por aqui passaram


Os fantasmas cozinham em seus caldeirões

A sopa dos restolhos do antigamente


Sobraram-nos as palavras, velhas, gastas

Caem sob as cortinas sem rumor, plácidas


As cortinas estão puídas, alimentam os percevejos

E os vermes do tempo implacável


A música já não toca. Os pássaros e seus cantos

Estão empalhados em algum quarto fechado


Uma parede nos separa da rua, de Deus

De quem somos resta um cântaro quebrado


A água toda se escoou. O vinho se escoou

Enquanto isso, no escuro, a aranha tece a teia.


Parusia

Penetro no fogo com os braços abertos

Trago o abismo nos olhos na ponta da língua


Cavalgo no campo das estrelas

Tendo a terra e a água por testemunha


Ofereço o meu espírito com sangue nas mãos

Ergo ao céu o candelabro da grande águia


Escrevo impelido pela força dos ventos

Com o trovão ribombando nos pulmões


O amor deixou a morte nas catacumbas

Trasladou-me para a vida das alturas


Converso com o peixe do mar alto

O que me foi segredado nas profundezas


A mesa está posta para a ceia do amor

Para a sua chegada no fim dos tempos.


Exílio

Os teus olhos fitam o céu para sempre

O azul penetra neles como um mar


Pássaros caem no chão seco

Um avião explode, destroços e sangue voam


O vento cruel fere os teus lábios

Não leva o pó incrustado nas ranhuras


As tuas mãos crispadas agarram o chão

O teu corpo hirto parte-se


O sol inclina-se sobre a tua face

A montanha desaba, o cavalo cala-se


A tua solidão é completa

É uma pedra no deserto


A tua alma exila-se devagar

Agora só Deus existe.