sábado, 9 de agosto de 2008

Poesia mínima


Estava a ler – a ler, porque estava lendo uma poetisa portuguesa, Adília Lopes, a poetisa que reabilitou o termo poetisa, desacreditado por ter cara de meloso, próprio de mulherzinhas choronas, subjetivo ao extremo. Observo que Adília Lopes não é individualista, mas criadora de linguagem, embora eu não aprecie sobremaneira a sua poesia – individualista é o cara centrado no Eu, assim com maiúsculas, só sabe falar do seu pobre mundo particular. Adília é criadora substantiva, trata o poema como um objeto de arte, e o manuseia com a linguagem. Posso não gostar desse manuseio, mas reconheço de longe o poeta – ou poetisa! – que trabalha a linguagem e não apenas a usa para desabafar seu drama pessoal.

Bom. Estava a ler uma crônica de Adília Lopes e a vi dar uma definição intrigante de poesia, em sua simplicidade: “Fazer poesia tem a ver com a necessidade imperiosa de "transferir" "para o mundo do poema limpo e rigoroso" "o quadro o muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira" (cito versos do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen intitulado "No poema" de "Livro Sexto")”. Anotei a expressão “para o mundo do poema limpo e rigoroso”, com uma aprovação muda: é o que eu quero do poema, que seja “limpo e rigoroso”.

Mas logo fui levado aos versos de Sophia de Mello Breyner Andresen “o quadro o muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira”, exatos, sem excessos, “limpos e rigorosos”, mas eu estava é pensando nos meus versos de uma oficina de poesia há alguns anos, muito semelhantes: “Os olhos / na água // no caminho / um pássaro // uma flor / sobre a mesa”, intitulado “Paisagem”, que foi escrito na hora, na lousa, como demonstração aos meus discípulos. Por um feliz acaso – mas existem acasos? – saiu-me o poema “limpo e rigoroso”, como por um passe de mágica, ao manusear as palavras que os meus oficineiros me forneceram. Tal feliz acaso – acabo acreditando que existem acasos – que apenas dispus as palavras uma à frente da outra e tive tão bom resultado.

Para provar a mim mesmo o feliz acaso dessas palavras, já ordenadas, à espera de que eu chamasse àquela ordem de poema, quis dispô-las em outra ordem, não as palavras uma à frente da outra, mas verticalmente – e não é que tive outro feliz resultado? Outro feliz poema – porque existem poemas felizes, e este é mais um: “Os olhos / no caminho // uma flor / na água // um pássaro / sobre a mesa.” Perfeito, não? Exato.

Desculpem a falta de modéstia, mas gostei me descobrir autor de um grande poema mínimo, perdido em meus achados. Nem coube, não houve espaço, mas vou estender esse espaço para mais uma citação: "casem-se os poetas com a respiração do mundo". É ainda Adília Lopes comentando a criação poética. É uma resposta a uma pergunta curiosa: Com quem deve casar a poetisa? Adília, poetisa sem cadeado na língua, responde e completa a idéia: “E eu vou ser mesmo moralista e vou dizer: acho que toda a gente devia ter o propósito de casar com a respiração do mundo. Ou, porque não?, com a respiração de Deus. A poesia é uma questão de fidelidade a esse casamento.” Não preciso dizer mais nada. Falou bem, exato, a poetisa.

Um comentário:

Abel Sidney disse...

Posso não gostar desse manuseio, mas reconheço de longe o poeta – ou poetisa! – que trabalha a linguagem e não apenas a usa para desabafar seu drama pessoal.

Overmano, isso que foi dito, foi dito e é tudo.

E digo mais: pode-se haver desabafo, desde que a linguagem trabalhada o desloque para além da pequena voz do poeta-falante... Pois que para partilhar é necessário um campo mais vasto, de troca e comunhão, para além das terras movediças do buraco negro do umbigo e adjacências... Talvez mais próximo do coração, ou entre este e o cerébro!

Você merece ser lido, descoberto, comentado.

Abraços
Abel Sidney