segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Os fantasmas da memória












Os troncos cortados no chão do bosque

São como os homens degolados nas esquinas da cidade.


Não sangram mais, secam, apodrecem.

A terra negra de carvão, as cinzas ao vento.


Uma árvore em forma de cruz abre os braços

E resiste: queima ainda, se consumindo em solidão.


Um pássaro morto num galho caído,

O canto parado no ar, como se ainda cantasse.


Um ou outro tição brilha indeciso

Numa poça d’água, ao desamparo.


Uma estrela se espelha nessa poça

E agoniza, com a dor multiplicada.


Uma flor cresce na fuligem das ruínas

Com o medo cinza corroendo as pétalas diáfanas.


segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A de Alfabeto ou O Disléxico

Escrevi num poema em prosa que saí analfabeto da escolinha de sítio da minha infância. Talvez por isso a minha irmã pensa que eu culpo a minha primeira professora, que se chama Conceição, tem seus oitenta e poucos anos de idade e está com Alzheimer. Não, minha boa irmã, eu não culpo a coitada da Dona Conceição. Eu é que era um burrinho muito xucro, que empacava e não ia para frente de jeito nenhum.

Deve ser uma das mais antigas recordações da minha infância (não fui um menino prodígio que, adulto, lembra-se de cenas de quando era um pirralho de uns dois anos apenas) a Dona Conceição me admoestando, rigorosa: “A sua mãe se mata de trabalhar e você não faz nada, nada!” Sou capaz de jurar que foram essas palavras, exatamente, e que eu me surpreendi: nunca imaginara que a minha mãe se matava de trabalhar (a Dona Conceição se hospedava em nossa casa, devia saber) e fazia o que os outros meninos da escolinha faziam – mas não aprendia nada.

Também o amor dos pais é cego. O meu pai, a minha mãe, os meus irmãos achavam que eu era muito inteligente. Talvez fosse. Mas tinha ao mesmo tempo uma admirável incapacidade para aprender.

Aos nove anos de idade, mudamos para Igaraçu do Tietê, uma cidadezinha pobre e ignorante. Resultado: tomei bomba na terceira série do Primário. Eu era mais ignorante do que os pobres meninos de Igaraçu do Tietê.

Ainda com onze anos, naturalmente sem saber o que fazia, decidi que iria ser padre. Entrei no seminário, em Jaú, onde estudei um ano de Admissão e dois de Ginásio. Nesses três anos, eu era o último da classe. Os padres e os meus colegas olhavam-me de esguelha: “Como pode ser tão inútil!”

Somente aos quinze anos, no terceiro ginasial, consegui aprender a ler. Conheci um rapaz que tinha o apelido de Seisano – porque ficara seis anos no primeiro ano do Primário. Eu deveria ter ficado oito.

De tanto passar vergonha, sem ninguém que me orientasse – a única orientação era o desprezo –, pus-me desesperadamente a fazer todo tipo de exercícios de dicção, decorando textos e repetindo-os ad infinitum. Tornei-me um dos melhores alunos.

Concluí depois que eu era disléxico; não sei se o meu diagnóstico teria fundamento, mas até hoje troco a posição das letras numa palavra ou dos algarismos num número, o que, então, dificultava o meu aprendizado. Superada essa dificuldade inicial, passei a aprender com facilidade – dizem que o disléxico é muito inteligente.

Dizem que o disléxico pensa por imagens – tornei-me poeta.

Escrevi num poema: “Essência do ritmo e forma do mundo, a imagem é o real do poema.” E mais à frente: “o poema é imagem de uma imagem.” Para concluir: “o poema é a metáfora do universo.” Ainda acredito que acertei em cheio. Coisas de disléxico.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Conhecimento da noite














Vou conhecendo a noite aos poucos.

Quando a pisar com os meus pés,


Quando não precisar dos dedos

Para tatear os móveis no escuro,


Quando as palavras se quebrarem

Porque não há mais nada a dizer


E a beleza perdeu a forma,

Quando ouvir o cavalo do mistério


E medir a paisagem do eterno

Com o pássaro de Deus no espelho


E a rosa exata nos lábios,

Como temer a pedra do sono


E o abismo das estrelas?

A música ainda soa no silêncio.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

O afogado


Quem escreve um poema salva um afogado, disse Mário Quintana. Salva em primeiro lugar o próprio poeta, completa Affonso Romano de Sant’Anna. Eu primeiro lembrei-me do meu poema “O Afogado”. Tornou-se um tema recorrente em minha poesia, o afogado. Ou algum elemento que o lembre. A gaivota e seu grito desesperado sobre a pedra do mar, onde sangra. Essa gaivota compareceu em três poemas meus quando escrevia “O Emparedado”, o meu primeiro livro.


Depois, não sei por que, lembrei-me do poema “Quintana’s Bar”, de Drummond. Algum afogado no poema? Abro a “Poesia Reunida” de Drummond, encontro o “Quintana’s Bar”, leio-o e não encontro nenhum afogado, nem gaivota ao menos. E eu que imaginava um aquário, e o poeta dentro, entre seres marinhos, fantástico, irreal. Mas olho bem e encontro uma estrela-do-mar e a gruta camoniana. Lembro-me de Camões salvando-se do afogamento, nadando com uma das mãos e com a outra carregando “Os Lusíadas”. Dinamene, coitada, é a afogada da história.


No fim do poema, viaja o poeta Mário Quintana. O destino do poeta é viajar. Mesmo que seja um poeta racionalista como João Cabral – diplomata, viajou à Espanha e mesmo ao Senegal de Leopold Sedar Sanghor. Mas fez a sua viagem, também, dentro do poema. Viajou nas imagens que criou muito racionalmente, as ondas do canavial que se tornaram ondas do mar, as lindas cabras de tão agrestes ou o ovo sem metafísica. O destino do poeta é viajar. O poema é uma “L’Invitation au Voyage” de Baudelaire. É mais que um convite ao sonho, é, na concretude das suas imagens, um apelo a superar o real, ir além, entrar numa outra realidade.



“O afogado mais belo do mundo” é um conto de Gabriel García Márquez. Não sei se foi esse conto que me levou a viajar com o meu afogado, criando-o, ou se foi T. S. Eliot. Confesso minhas fontes. Originalidade não existe. Talvez a minha fonte seja “A gaivota” de Tchekof, mas eu nem a havia lido quando uma gaivota começou a gritar e a agonizar nos meus poemas. Mal? Bem. A leitura nem é necessária, basta um nome, uma imagem, uma evocação – e começa a viagem. O afogado? Estou salvo.

sábado, 9 de agosto de 2008

A respiração de Deus

Sinto a respiração de Deus na pedra,

Na árvore da aurora.


Estou coberto de água,

No vale dos caminhos sem retorno.


Quem sou? Quem é o poeta?

Sou o espanto do homem plantado na terra.


Sou a raiz do sonho sufocado.

Farejo como um cão o lodo do abismo.


Sou real? Alguém me sonha?

Existo como as coisas, no caos?


Entrei no mar com a minha rede de pescador.

A realidade do peixe tem um peso eterno.


Mas que importa que eu me vá? Que importa que continue?

Somente furando os olhos posso ver Deus.


Os soterrados

Esperamos por nada. Logo estaremos todos mortos,

Sob a terra, no túmulo do esquecimento.


Alguns de nós são ainda crianças.

É cedo para morrer.


Com fome e sede, sem ar,

Sujos de terra, a boca, os olhos cheios de terra.


Por que nos abandonaram?

Quanto vale a vida de um homem?


Mais hora, menos hora, estarei morto

E ninguém ficará sabendo.


Ninguém se importará

Quando eu me for para sempre.


Estou de partida. Não olho para trás.

O homem nasce com o eterno na ponta dos dedos.


O mar em mim

O mar está todo em mim

Com as suas feridas abertas em minha fronte.


Suas ondas vão e vêm nos meus olhos,

Beijam-se nas praias do eterno.


A solidão do mar nos meus olhos,

Brilhando nos rochedos com o sal e o sol.


A rosa de tuas pegadas na areia

Rumo ao horizonte infinito.


Onde a minha, a tua essência?

Nos sargaços, na púrpura do fundo do mar.


Uma estrela caiu na montanha,

Aponta o abismo do céu e da terra.


Atira a pedra do esquecimento, me diz,

E dorme à espera do clarão da aurora.



Poesia mínima


Estava a ler – a ler, porque estava lendo uma poetisa portuguesa, Adília Lopes, a poetisa que reabilitou o termo poetisa, desacreditado por ter cara de meloso, próprio de mulherzinhas choronas, subjetivo ao extremo. Observo que Adília Lopes não é individualista, mas criadora de linguagem, embora eu não aprecie sobremaneira a sua poesia – individualista é o cara centrado no Eu, assim com maiúsculas, só sabe falar do seu pobre mundo particular. Adília é criadora substantiva, trata o poema como um objeto de arte, e o manuseia com a linguagem. Posso não gostar desse manuseio, mas reconheço de longe o poeta – ou poetisa! – que trabalha a linguagem e não apenas a usa para desabafar seu drama pessoal.

Bom. Estava a ler uma crônica de Adília Lopes e a vi dar uma definição intrigante de poesia, em sua simplicidade: “Fazer poesia tem a ver com a necessidade imperiosa de "transferir" "para o mundo do poema limpo e rigoroso" "o quadro o muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira" (cito versos do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen intitulado "No poema" de "Livro Sexto")”. Anotei a expressão “para o mundo do poema limpo e rigoroso”, com uma aprovação muda: é o que eu quero do poema, que seja “limpo e rigoroso”.

Mas logo fui levado aos versos de Sophia de Mello Breyner Andresen “o quadro o muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira”, exatos, sem excessos, “limpos e rigorosos”, mas eu estava é pensando nos meus versos de uma oficina de poesia há alguns anos, muito semelhantes: “Os olhos / na água // no caminho / um pássaro // uma flor / sobre a mesa”, intitulado “Paisagem”, que foi escrito na hora, na lousa, como demonstração aos meus discípulos. Por um feliz acaso – mas existem acasos? – saiu-me o poema “limpo e rigoroso”, como por um passe de mágica, ao manusear as palavras que os meus oficineiros me forneceram. Tal feliz acaso – acabo acreditando que existem acasos – que apenas dispus as palavras uma à frente da outra e tive tão bom resultado.

Para provar a mim mesmo o feliz acaso dessas palavras, já ordenadas, à espera de que eu chamasse àquela ordem de poema, quis dispô-las em outra ordem, não as palavras uma à frente da outra, mas verticalmente – e não é que tive outro feliz resultado? Outro feliz poema – porque existem poemas felizes, e este é mais um: “Os olhos / no caminho // uma flor / na água // um pássaro / sobre a mesa.” Perfeito, não? Exato.

Desculpem a falta de modéstia, mas gostei me descobrir autor de um grande poema mínimo, perdido em meus achados. Nem coube, não houve espaço, mas vou estender esse espaço para mais uma citação: "casem-se os poetas com a respiração do mundo". É ainda Adília Lopes comentando a criação poética. É uma resposta a uma pergunta curiosa: Com quem deve casar a poetisa? Adília, poetisa sem cadeado na língua, responde e completa a idéia: “E eu vou ser mesmo moralista e vou dizer: acho que toda a gente devia ter o propósito de casar com a respiração do mundo. Ou, porque não?, com a respiração de Deus. A poesia é uma questão de fidelidade a esse casamento.” Não preciso dizer mais nada. Falou bem, exato, a poetisa.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Em face dos últimos acontecimentos

Dizem que a felicidade não é notícia, e tasca tragédia nos olhos do leitor, tão ávido de deliciar-se com a desgraça alheia. Mas será isso verdade? É o que Machado de Assis dizia no seu “Suave Maria Magno”: contemplar do alto mar de nossa segurança a tragédia do próximo.


Seria verdade tudo que o Velho Bruxo afirma? Creio que ele tem a sua boa dose de razão, como têm razão os jornais que nos impingem a dor como prato cheio – prato principal e sobremesa variada.

Contra a corrente, conto o que ouvi nos últimos dias. Uma cadela descobre uma criança no lixo, protege-a, salva-a. Um ato de heroísmo de que os seres humanos não são capazes – foram capazes de jogá-la, à criança, no lixo.

Outra notícia feliz? Um menino de nove anos morde um cão feroz e salva-se. Querem maior proeza? Ah, eu tenho maior proeza: um nenê de nove meses (nove passa a ser um número cabalístico) morde uma cobra coral, mata-a. Que força nos dentes – exclamo, pensando que um bebê ainda não têm dentes.

Que mais? Um menino toma um tiro entre os supercílios e sobrevive. Entre tantos casos de balas perdidas, que facilmente acham vítimas mortais, encontro uma que atinge justamente um menino, quase um nenê, justamente entre ou sob os supercílios, e por uns dois centímetros miraculosos, deixa-o com vida.

Por que os jornais não contam mais histórias que acabam bem? Temos tanta sede de sangue? O homem é um ser assim sanguinário? Não nos deliciamos com as flores, com os pássaros, com o sol e com a chuva?

É muito pedir que noticiem que uma flor e um pássaro cantaram, o sol e a chuva, cada um por sua vez, sorriram enamorados? Mas existem notícias felizes e existe gente sem tanta maldade no coração que quer ouvir boas novas.

Em face dos últimos acontecimentos – que nos anunciam o fim do mundo, mas enquanto não chega... Sejamos menos selvagens.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O ovo da galinha


Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Um jornalista se meteu a escrever sobre esse velho assunto inútil. Eu já pensei lá comigo: “Política é a arte de enfiar a mão na merda”, como disse Otto Lara Resende, e esse cara prefere falar do cu da galinha do que do próprio, aliás, do que do dos políticos. A notícia dominante é a política, oras.


Logo vi, porém, que o cara falava sério. E tasca comentário de pesquisas científicas concludentes: o ovo nasceu primeiro. Passou por uma série de mutações genéticas, desde um primitivo ovo de réptil ou peixe, até se tornar ovo de galinha. Grande descoberta! Que vamos fazer com ela? Proclamar que então Deus não criou a galinha, portanto Deus não existe?


João Cabral de Melo Neto escreveu uma série de poemas sobre o ovo de galinha. Não queria provar nada, não queria investigar o que havia dentro do ovo, qual a sua origem, nenhuma questão metafísica. Falou do ovo externamente, como um objeto que se pode manusear.


Falou do ovo como falou do relógio ou da cabra. Aliás, falou do relógio como falou da cabra. Não há como falar de relógio sem falar do tempo e todas as suas implicações, como se todos fôssemos mesmo eternos e o tempo apenas uma convenção. Conseguiu o impossível: falar do relógio como um objeto manuseável e mais nada.


Conseguiu mais: se apaixonar pela cabra. Não disse isso nos poemas da cabra. Disse numa entrevista: “A cabra é linda!” Como um cara, um intelectual, um cara sensível como só um poeta pode ser, embora ele advogasse o fato de o poeta ser um cara normal – como pode um cara normal achar linda uma cabra?


Clarice Lispector também falou da galinha e do ovo de galinha. Metafisicamente. Tudo na escrita de Clarice leva o olhar para mais longe ou mais dentro. Escreve como se tudo levasse a crer no indizível. A galinha é mais importante do que a galinha, o ovo do que o ovo. Logo, o homem é mais importante do que esse bípede implume de Platão.


Logo, falar do ovo e da galinha é melhor do que enfiar a mão na merda.