quarta-feira, 30 de abril de 2008

terça-feira, 29 de abril de 2008

Quando eu morrer


        
     
   














 Os cavalos cantarão quando eu morrer,
        Cantarão em cavalgadas pelas invernadas
        Livres, leves, encantados, finalmente
        Longe das contingências humanas.
 
        A noite virá com o seu orvalho puro
        Abençoando as casas e as árvores do caminho.
        Os pássaros dormirão em silêncio
        Sob o perfume das orquídeas e das dálias.
 
        A minha alma se olhará no espelho da lua,
        Verá uma estrela se multiplicando,
        Inventando os clarins da alvorada.
 
        Eu serei uma pedra dormindo no fundo d’água,
        Serei polido pelas águas que passam e passam,
        Rolando e me anulando sem fim na eternidade.  
                


segunda-feira, 28 de abril de 2008

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Cronista, esse espécime anacrônico











De que cronista devemos nos lembrar? Do pai de todos, o maior de todos, Machado de Assis, que criou essa tradição de cronicar em nosso país, e cronicou como ninguém. Não que aquela forma de fazer crônica fosse nova, invenção dele, mas ele a tornou nova, a reinventou, tornou sua.

Alencar fazia o mesmo tipo de crônica, não era novidade. Mas lembrando o louco do Pound (sempre imagino Pound na gaiola em que o puseram no fim da 2ª Guerra Mundial, às vezes no hospício numa camisa-de-força, arrastando as longas mangas brancas e escrevendo os Cantos com os pés), “Literatura é novidade que permanece novidade”... As crônicas de Machado permanecem novidade. É um prazer renovado ler e reler aquelas idas e vindas, aquelas idéias enviesadas, aquele pegar uma idéia como ao acaso, como se não fosse dar em nada, e era o tema da crônica, se é que a crônica, como Machado a entendia e realizava, tinha tema.

Tomar o ínfimo e tratá-lo como grandioso, ou o contrário, tomar assuntos grandiosos e tratá-los como ínfimos, Machado é o deus ex-machina, é ele quem manda e desmanda na realidade. Tratar a realidade como supra-realidade, e a supra-realidade como realidade, fazer o diabo com as coisas, enrolar Deus e o diabo no mesmo novelo, rindo de um e de outro, com cavalheirismo, para não ofender nem a um nem a outro.

Nelson Rodrigues faz o mesmo tipo de crônica de Machado. A linguagem é que já é outra, rápida, como quer o jornal, sem literatices, indo direto ao âmago. Mas fazia literatura também, disfarçada, com aparente desleixo, usando a técnica do teatro, da movimentação dos personagens, levando o leitor, distraído, para uma surpresa final. “A menina sem estrela” é típica disso. Como dói! Você vai distraído, se divertindo com as tiradas, um misto de humor e sarcasmo, e pá! De repente a porta na cara. A menina que nasceu sem estrelas, cega, não poderá jamais enxergar as estrelas. Nem precisou contar que nasceu também meio retardada, que iria viver pouco. Já tinha posto o leitor a nocaute.

Pôr o leitor a nocaute – esse deveria ser o objetivo de quem escreve.

Machado, campeão, diverte o leitor, distrai-o e distrai-o, até que ele, quando vê, perdeu por pontos – aliás, ganhou. Machado e o leitor ganham nesse ringue do espírito.

Rubem Braga vai tratar do ínfimo do jeito dele, que já não é o jeito de Machado, mas o do poeta que escreve em prosa. O ínfimo é poesia. Descobre poesia nos ínfimos recantos, nos ínfimos desvãos desta vidinha gozada e dorida. Trabalha como um contador de causos, descansado, com todo o tempo do mundo. Encantado com este mundo destrambelhado, que não tem jeito mesmo, mas que nessa falta de jeito guarda o seu fascínio. O Velho Braga narra a vida que podia ter sido, e foi, não como a de Bandeira, o Bardo, a vida pretérita feliz, e a futura encantada, um clima de nostalgia pairando por tudo.

Disseram que o Velho Braga não teria lugar nos jornais de hoje. Não há mais espaço para essa crônica descompromissada, esse armazém de miudezas da vida. Eta vida anacrônica! Não tem lugar, não tem tempo para a crônica – não tem tempo para o tempo! Pois se até a vida virou anacrônica! Lembra-se do silogismo de Zenão, a incrível velocidade da tartaruga? O coelho nunca alcançaria a tartaruga porque quando tivesse percorrido um tanto a tartaruga teria percorrido outro tanto. Isto é do tempo em que a vida era crônica.

Kafka narra a história da viagem impossível ao povoado mais próximo, que se distancia só ao ser imaginado, e nunca será alcançado. Isto é do tempo em que a vida era crônica.

Hoje é o tempo da pressa. Os deuses quebraram todos os relógios, os deuses do mercado, do consumismo, do espaço cibernético, pós-espaço e pós-tempo. Nós mesmos, pobres homens, somos anacrônicos.

Pus o leitor a nocaute? Pelo menos você não imaginava que eu fosse terminar com esse pessimismo. Salve, Cronos! Salve-nos, Cronos!

Das incertezas da arte

António Lobo Antunes disse: “Só vale a pena começarmos um romance quando temos a certeza de que não somos capazes de o fazer”. É uma dessas frases de efeito. Mas não significará um pouco mais do que isso?

Costumo ver escritores dizendo que não valeria a pena escrever um livro, não teria graça, se soubéssemos o final de antemão. Há quem discorde, que o escritor digno desse nome deve planejar uma obra e realizá-la tim-tim por tim-tim como a tinha planejado. Sem segredos, sem mistérios. Matematicamente.

Bonito. Mas não é assim que funciona. A criação tem segredos e tem mistérios. Todos os grandes escritores reconhecem isso. São fascinados pelas surpresas e pelos milagres que o realizar de uma obra nos reserva. Sem graça é traçar um esquema e colocar a obra dentro desse esquema. E a obra só pode sair sem graça.

Os grandes escritores são capazes de realizar milagres. Não sabem como, mas realizam. Os outros são pequenos, são professores, são os críticos: não fazem, mas ditam as regras de como se deve fazer.

Há exceções, todas as regras têm as suas exceções. João Cabral de Melo Neto. Para o engenheiro da composição o poema é realizado segundo um projeto exato, sem inspiração, sem acasos, sem a ação do inconsciente. Anula-se a expressão, fica valendo apenas e tão-somente a construção.

É tão bela a proposta de João Cabral que parece verdadeira. A beleza é irmã da verdade. Eis uma bela afirmação, mas em desacordo com João Cabral e com os valores estéticos que orientam a arte há muito tempo. E por falar em valores estéticos e em orientação da arte, entramos novamente em desacordo com João Cabral. Não há valores, não há orientação: há construção.

Mas, na prática, é o que acontece? Acontece que existe o inconsciente, que por mais que se monte um esquema, há o papel do acaso, do imponderável, de uma iluminação que outrora chamaríamos inspiração, ditado das musas ou do espírito. Ficar apenas no esquema produz a arte dos professores, correta, sem surpresas, exata, feita com perfeição, mas sem criação. Na criação, o buraco é mais embaixo.

A arte de João Cabral e dos construtivistas, então, não é arte? Pode ser grande arte, apenas não reconhecem o papel do inconsciente, de uma visão especial, de uma intuição mágica, da epifania que pode acontecer num momento, e noutro não. Epifania é manifestação tão especial que está associada ao divino.

Nós diríamos que é a manifestação do inconsciente, que, de um acúmulo de experiências, de repente se acende uma faísca e o artista consegue concretizar esse instante numa obra de arte.

Permanece estranha a afirmação de António Lobo Antunes. Ter certeza de que não o conseguiríamos realizar? Lutar contra o impossível? Se sei que é impossível, por que gastar meu tempo e energia em tal obra? Não sei o que vai acontecer, não sei que obra irei realizar, que reações terão tais personagens, como dominarão o romancista, ou que imagens irei criar no poema, para onde as palavras me levarão.

Esse mistério me fascina e desvendá-lo pode se tornar a razão-de-ser da criação. Mas, se tenho certeza de que não conseguirei realizá-la, por que insistirei em criar tal obra? Estultície. Somente posso pensar em estultície. Mas porém, fica uma interrogação: e se ele tiver razão? Se, pelo menos para ele, não for esse o caminho?

Jorge Luis Borges conta que sofreu um acidente e decidiu escrever um conto para ver se ainda seria capaz de criar. Um poema não valia. Poemas ele tinha feito muitos. Tinha certeza de que os realizaria. Um conto era outra história. O conto era o desafio. E Borges escreveu o seu primeiro grande conto, que tem o nome mais ou menos, “Tlor, Uqbar, Orbis Tertius”. Assim nasceu um contista: de um desafio. Mas pode ser uma exceção.

Interessante que Borges acaba conseguindo notoriedade pelos contos fantásticos que cria, e não pelos poemas. O desafio é tudo. Mas, por outra, como Borges é um grande mistificador, pode ser que realizasse os contos fantásticos com esse desafio ou não.

Pode ser que António Lobo Antunes também seja um mistificador e também realizasse seus romances com ou sem desafio. Talvez o primeiro romance tenha sido um desafio, depois já saberia ao certo que realizaria os outros.

Talvez. Quem pode afirmar o que aconteceria se não acontecesse? E pode essa assertiva valer para António Lobo Antunes, não para outros. Pode valer para todo mundo ou para ninguém. Quem sabe dos escaninhos da criação, dos enigmas, das pedras-de-toque que um escritor usa, sabendo ou sem saber?

Todos temos o direito de, uma hora ou outra, dizermos besteiras. Por que não António Lobo Antunes, apesar de ser um grande escritor? O que pensamos que é besteira não pode ser uma bela verdade? E caímos na contradição que já citamos: a beleza da verdade ou a verdade da beleza? Tentar explicar a criação é tautologia apenas.

António Lobo Antunes é português e os portugueses, sábios, dizem que os artistas são artistas porque não sabem, mas fazem.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A aldeia de Tolstoi








É mais do que conhecida a frase de Tolstoi: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Verdade que frases são frases, valem mais pelo efeito que causam do que pela verdade do que dizem. Há quem não atina com essa evidência elementar e quer fazer de uma assertiva assim banal, só porque de Tolstoi, verdade universal. Todos os grandes autores cantaram primeiro sua região, apostrofam. Toda obra deve ter cor local. Como se fosse tão simples assim.

À primeira vista, é sugestiva a idéia. Drummond cantou Minas e Itabira. Murilo mostra bem sua mineirice. João Cabral é a terra seca de Pernambuco. Guimarães Rosa é Minas. Machado de Assis? Pois é, Machado pintou milimetricamente o Rio de Janeiro, mas diziam que ele não tinha cor local. O que é mesmo essa cor local? Cecília Meireles era outra filha do Rio de Janeiro – que não aparece em sua obra.

Cecília nasceu universal. Seu livro “Viagem” foi a primeira obra modernista sem cor local, sem as tintas do nacionalismo verde-amarelo. Foi a primeira obra aceita pela Academia Brasileira de Letras, a primeira a cruzar o Atlântico. Cecília nasceu enorme e universal, sem cantar a sua aldeia.

Disseram que a sua poesia tinha mais sabor português. É pouco. Tinha sabor universal. Os grandes temas da poesia de todos os tempos, num tom, numa musicalidade, que poderia ser de qualquer lugar e de todos os lugares. Por que ninguém diz que Cecília Meireles é o maior poeta brasileiro? Por que era mulher, não era poeta, mas poetisa. Por causa apenas de nosso machismo.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”, escreveu Fernando Pessoa, que não começou por pintar a sua aldeia. O quê? Você me diz que a sua aldeia era Portugal? Talvez, mas Fernando Pessoa ficou grande por tratar grandes temas de maneira grande, invulgar, particular e universal – e não por tratá-los à maneira portuguesa.

Concordo que é muito interessante a idéia: “começa por pintar a tua aldeia.” Foi por isso que me tornei poeta. Eu estudava no seminário, em Rio do Oeste, SC, e por acaso me caiu nas mãos um livrinho, “Os Simples”, de Guerra Junqueiro. Nesse livro, Guerra Junqueiro pinta a sua aldeia, eu decidi pintar a minha. Descobri que poeta não era uma entidade abstrata, mas um homem que tem sangue e terra nas veias, como eu. Ele falava das coisas que eu conhecia, árvores, animais, gente pobre da roça. Bastava falar das coisas que eu conhecia, para ser poeta.

Fiz meu primeiro poema: “A Figueira”. Compreendi de imediato que me faltava muita coisa: dominar a linguagem, trabalhar a linguagem, conhecer a vida com a linguagem. Como se eu já soubesse o que é literatura.

Pouco depois, conheci o mar. Encantou-me, fascinou-me, maravilhou-me. Foi o encontro com o milagre da beleza e do mistério. O sentimento do eterno e da finitude. Foi um chute no estômago da alma: instalou-se o caos primordial. Estavam definidos os meus grandes temas.

Até hoje, falo da terra a que estou ligado como uma árvore, pelas raízes, e do mar, a que estou ligado pela alma. As minhas imagens têm seiva das árvores, dos animais, dos homens que conheci, e têm água e sal e sargaços do mar maravilhoso, enigmático, efêmero e eterno. “No princípio, Deus pairava sobre as águas.” Antes de haver o mundo, havia as águas. Havia o eterno, o efêmero foi criado depois.

A minha aldeia? Faz tanto tempo que nasceu a idéia de Aldeia Global, que dá vergonha exigir que se fale de uma minúscula aldeia. Que se mostre cor local. Alguém pode me dizer qual é a cor da Aldeia Global? A maioria dos poetas cantou a sua aldeia, mas já morreram. Os poetas de hoje precisam cantar o mundo. Eu continuo a cantar a minha aldeia, mas estou deslocado, desfocado, errado. Tolstoi cantou a sua aldeia, Shakespeare também, mas morreram. Hoje não existem aldeias, mas a Aldeia, o mundo-universo.

Quem sobrevive é o homem, enquanto forma de linguagem. Shakespeare e Tolstoi sobrevivem além da morte porque criaram linguagem, não porque cantaram sua aldeia. O que ficou deles é o universal.

Todas as teorias são belíssimas enquanto teorias. Literatura é linguagem. Ou você cria linguagem ou ficará sonhando em cantar a sua aldeia. “Todos cantam a sua terra/ Também vou cantar a minha.” É bonito, mas se eu criar linguagem, farei literatura, poesia universal. Não porque cantei a minha terra, mas apesar disso.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Ars Poetica

Quero escrever como o homem das cavernas.

Quero registrar nas paredes o pasmo e o encanto,

O domínio sobre as coisas e o banal dessas coisas.

Quero gravar Deus e a ausência de Deus.


Quero deixar a minha marca na pedra.

Quando o homem escrevia com o diamante,

Quando a palavra era um milagre.

Primeiro a figura dos animais na pedra,


Depois a mulher, o homem e o universo.

Quero pintar o negativo, a forma e o volume.

Quero registrar a árvore, o pássaro e a montanha,


O mar, o peixe e o abismo, as viagens sem retorno.

Quero gravar o bisão e o cavalo, as mãos e os chifres,

O fogo e a sombra, a geometria claro-escura da vida.


quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cerâmica


A cerâmica é limpa

Como o dia, como o sol.


Um sorriso japonês

Por detrás, às escondidas.


O cântico da água clara


E o cachorro abanando

A cauda para a montanha.


O pássaro tece o verde,

A flauta organiza o azul.


O brilho duro das pedras,

A memória do diamante.


Um fogo frio consome

A graça pura da vida.


Alto e súbito silêncio.

A rosa eterna

A rosa desliza no espelho.

Um bater de pálpebras, as pétalas vermelhas

Como sangue na água.

O perfume inebria, estonteia, mata.


Dobro os joelhos, caio por terra.

A voz embargada, os olhos turvos

E a alma em êxtase com a música leve.

A rosa paira no ar, com a dança de seda.


Um gafanhoto se perde nas pupilas abertas.

A morte cintila no cristal.

Os beija-flores bailam na janela.


Os anjos levam a alma da rosa

Batendo as asas brancas e douradas.

A rosa vai e permanece, eterna.

terça-feira, 8 de abril de 2008

O outro mar

Joguei os dados da eternidade.

Cantei os mesmos números do jogo

Repetido à exaustão, na beira das águas.

Os cavalos pastam a calma das manhãs.


São perfeitas as estrelas e as anêmonas.

Despojei-me de ritmo, peso e medida.

Caminho com a minha nudez sem sentido

E com todas as fraquezas humanas.


No silêncio dos búzios, a memória de Deus.

O meu destino me convida: adiante.

Pairo no horizonte, entre a terra e o céu.


O mar me fala, sereno, completo.

Eu estudo a angústia do abismo:

Além do mar existe um outro mar.

A viagem do eterno

Não me canso de cantar o meu naufrágio.

A minha alma entre os destroços, a ferrugem

E os baús de memórias de um porto longínquo.

Quem é que fala? Que vozes estou ouvindo,


Os mortos insepultos clamando no abismo?

Sou ninguém e sou os mortos sobrenaturais

Com orações e peixes na garganta.

Derramei o meu sangue entre as pedras da praia,


Quero o mistério do mar inominável.

Vesti a túnica da ilusão do mar.

Quando deixar este mundo de ausência,


Dos ferros do meu naufrágio cantarei

O touro de sombra do mar.

Ensaio no meu canto a viagem para o eterno.

Merecimento


Ninguém merece a morte.

Inventamos a desgraça da guerra,

Tecemos rios de sombra, labirintos de tristeza

E angústia insondável.


O nosso sangue teceu o sangue.

Nada explica a nossa ambição sem medida.

Trazemos o fogo nos olhos, o ódio na alma

E apenas um pouco de palha nas mãos.


Erguemos até o céu o cálice.

Somos cúmplices de todos os pecados,

De todos os delírios do coração.


Mas não merecemos a morte.

Sofremos o deserto de Deus,

Cresce na areia seca a flor eterna.

domingo, 6 de abril de 2008

Os olhos da minha mãe

Uma flor nos chifres, uma fonte

De leite puro mugindo no pasto.

O orvalho da aurora me purifica.

Brotam da memória um bezerro e um touro


Voando sobre as árvores da infância.

Onde o cavalo do meu pai? Onde

O grito retumbando como o trovão?

Os centauros celestes fazem chover


Pétalas do delírio e borboletas azuis.

Um peixe curioso espia das locas na água verde

Do ribeirão correndo no fundo do pomar.


O eterno dorme ao meu lado como um cão.

Minha mãe chega à porta com pássaros nos ombros

E me mostra a face de Deus nos olhos.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A túnica de Deus


O poema pousou na bateia
Entre os cascalhos e o peixe vermelho.
A candeia ilumina a sala,
As vigas do telhado e os anjos


Com as asas abertas sobre nós.
Uma toalha de linho e uma pedra sobre a mesa:
Tomo a cruz, o cálice dourado,
O vinho e o pão. Abro o Livro.


Não sei como te chamas, nas águas do espelho.
Foi-se o tempo de semear, foi-se o tempo de colher,
É o tempo da morte doce, do barco e do cisne.


Eu navego sem medo sobre o abismo.
As chamas da rosa nos lábios em silêncio,
Minha mãe tece a túnica de Deus.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

As flores de pedra

Quando as dores do mundo são a dor.

Na minha língua vai florindo a flor da loucura.

A lagarta cega entre as folhas da árvore

Fia a forma do efêmero.


O galo tece as cores da alvorada

Com os cabelos dos mortos.

As palavras eram de pedra

Quando morreram os últimos jacintos.


O arco-íris assinala o lugar das covas,

A minha língua está seca de tanto contar os mortos.

Meu pai ordenhava as vacas na madrugada;


Ao anoitecer, ordenha a morte.

O silêncio da rosa: abismo.

Uma aranha metafísica me anula.

Homenagem a Magritte

Falo palavras claras, vejo com clareza.

Mordi a língua, minhas palavras sangram.

As idéias cheiram, sabem a mulher, a pássaro.

As idéias não são nada diante do corpo da mulher.


Os espelhos quebrados são múltiplos espelhos.

Nuvens voam. Sai das nuvens a mulher sem face.

A minha língua apunhalada não se cala.

A língua voa, verde pássara.


Uma folha que se queima é uma floresta que se queima.

Uma pedra é nítida como só uma pedra é nítida.

Quero o meu poema nítido como uma pedra.


No chão desolado do poema cresce uma flor de pedra.

Quando a nuvem se tornar nítida, sólida e nítida

Como uma pedra, meu poema estará terminado.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Usina de Sonhos

1. Quando digo que sou de Dois Córregos, logo, querendo elogiar-me como poeta, dizem: “Só podia ser!” Tudo isso por causa do meu amigo José Eduardo Camargo, que inventou uma Usina de Sonhos para produzir poesia, elemento em falta no mundo de hoje. Não vou explicar o que é a Usina de Sonhos porque não sou a pessoa mais indicada para fazê-lo, sou até a menos indicada, tanto que impliquei com o seu onirismo. Porque não posso conceber que poesia seja sonho, eu que a quero tão real, concreta, viva. Implicâncias.

2. Mas a Usina de Sonhos do José Eduardo, sem me deter em explicá-la, pretendia levar os jovens a produzir poesia, depois os mais velhos, depois os detentos, as detentas, e as paredes e muros que os prendiam, como as paredes e os muros dos cidadãos livres da cidade, floriam e cantavam com as palavras de poemas. Palavrões pichados, gestos obscenos? Não; poemas. A poesia é a linguagem da liberdade. O sonho floresceu, as crianças voaram com asas de anjos, os adultos tornaram-se crianças, as grades não doíam tanto, a imaginação passava além, sonhando com um mundo melhor, de mais alegria, onde tudo é possível, porque a poesia é possível.

3. Implicâncias minhas, repito. Implico até com o verbo “produzir”: poesia deve ser criada, embora o poeta não seja Deus, e não produzida, que é próprio da máquina, e o poeta certamente não é uma máquina. Mas eu orientei uma oficina (olhem como a língua é traiçoeira: “oficina”, coisa de máquina) de poesia no Sesc aqui de Bauru e, seguindo as sugestões de meus textos, o coordenador cultural da entidade montou um cd muito bonito expondo os resultados do trabalho, os poemas criados pelos discípulos, com... Uma máquina! Sim, senhores: as engrenagens de uma máquina fazendo saltar as letras, as palavras, os poemas – não criados, mas produzidos em série. Ficou bonito – e qualquer um pode ver que os poemas são formas autônomas, que nada ficam a dever às maquinas.

4. Nasci em Dois Córregos, com muito orgulho, e no Matão, uma zona rural do município, onde vivi os primeiros anos de minha vida, meus primeiros verdes anos, e o contato com a natureza fez-me poeta, e me sinto cada vez mais poeta, se isso é possível, quanto mais me sinto ligado à terra. Eu já disse: o mal do homem contemporâneo é ter perdido as suas raízes. As minhas estão lá, no Matão da minha infância. Lá enterrei o meu umbigo, que floresceu e floresce com o sol e com a chuva. Quando dizem – o umbigo do mundo!, penso logo no meu Matão. Quando dizem que alguém só olha para o próprio umbigo, penso no meu – florescendo na terra vermelha do Matão.

5. O José Eduardo fez tanto que Dois Córregos ganhou o mundo. Foi reconhecida pela Unesco como a Cidade da Poesia. Por isso me dizem: “É de Dois Córregos? Por isso é poeta – veio da Cidade da Poesia.”

6. Usina de Sonhos! Eu digo que não basta sonhar, que fazer um poema é um árduo trabalho com as palavras. Que um poema não é fruto da inspiração, mas é construído como se constrói uma peça material. Não é à toa que João Cabral insistia na materialidade da palavra. Vamos falar também da materialidade do poema, que não é nuvem etérea, mas forma, mas coisa.

7. Vamos falar da materialidade do sonho. Não vou negar mais que a poesia é sonho, mas insisto que existe uma materialidade do sonho. Como? Oras, no poema.

8. Eis uma bela definição de poema: O poema é a materialidade do sonho.

9. É piegas, concedo. É piegas, mas o sonho faz falta na vida. Como o sonho é abstrato, vamos materializá-lo no poema.

10. Entre versos, palavras, imagens, a poesia continua. “Nem todos se libertaram ainda”, disse Drummond; por isso a poesia é necessária. E quando todos tiverem se libertado? Então tudo será poesia. Piegas, mas belo.

11. Depois de Auschwitz a poesia não é mais possível? Então é que se torna mais necessária. O desespero do abismo transcendental, mais do que qualquer coisa, precisa ser cantado.

12. Depois que as cidades explodiram, transformaram-se em metrópoles, não é mais possível a poesia? O homem chega à transcendência da banalidade da vida pela poesia.

13. A poesia é a transcendência da coisa – ou do sonho – no poema.

14. Usina de Sonhos? Usina, porque tratamos de coisas concretas. Sonhos, para que a realidade não nos sufoque. Certo que Dois Córregos não é nenhuma grande metrópole, mas, por isso mesmo, lugar para a emoção recolhida na tranqüilidade, como queria Wordsworth ao trabalho do poeta, Dois Córregos merece ser chamada – Capital da Poesia.