sábado, 13 de outubro de 2007

O menino morto

A pedra sangrava coberta de flores,
o silêncio dentro.

O sangue fluía dos olhos da pedra,
o menino morto dentro.

Um cachorro sofre ao lado,
vai-se transformar em pedra.

O silêncio da pedra

A pedra fez silêncio.
A árvore deixou cair uma folha,
uma fruta, um pássaro.
A folha pairava no ar, voava.
A fruta se esborrachou na pedra.
O pássaro pousou ao lado para comer a fruta.
Bicava o silêncio.
Canto fica para depois.
Agora a fruta, o chão verde,
com poças d’água.
A água é vermelha e uma libélula beija.
Um menino caminha sozinho e chora
uma lágrima quieta.
A pedra faz silêncio
para ouvir a lágrima do menino.
O menino ergue o braço, o dedinho.
O pássaro vem sentar no dedinho, abre o bico,
mas faz silêncio, aprendeu com a pedra.

Panorama visto da ponte

Abro a janela e vejo o horizonte, onde a terra acaba e o céu começa. Não sei olhar para perto, quero abarcar todo o universo. Onde a terra acaba são casas, é a cidade que vai até o fim do mundo. Vai e não sabe bem se ali terminou, se continua. São casas esparsas, são amontoados de casas. É o verde por entre as casas, é o verde, sempre o verde. Até onde vai a cidade? Quando não é mais o verde, é o céu azul. É o céu com todas as cores, mesmo que não seja ao crepúsculo. O carmesim, o violeta, os vários tons, melhor, as várias cores do azul.

Agora é hora de sol. Dá-me na cara, cega-me, embaça-me os olhos. Tanto sol, e tanta secura. Seco na pele, na língua, nos olhos, na alma. Dói, arrebenta, quebra, parte-se – a pele, a retina, a sensibilidade. É uma palavra muito delicada, a sensibilidade, e parte-se. Como pétalas de cristal, caídas no piso frio, com um brilho quase de sangue. Meu Deus! A que me levam as palavras, frias, minerais, como as queria o poeta frio e mineral. Ah, poesia. Nem a pedra é fria, tem alma e sangue dentro.

Ergo os olhos e vejo a fumaça, cheiro a fumaça – gosta de queimar, esse povo. Queimaria as fuças, se pudesse. Queimam o próprio rabo, que não vêem. Deleito-me xingando a populaça, como se resolvesse. Melhor xingar o governo, os empresários, que também são governo. Queimamos o ar que respiramos, nós, povo simples, e a elite da tropa do governo.
Pois é, também eu falei no filme que está dando o que falar e no fim vai ficar nisso aí mesmo: palavras. Não são as palavras que movem o mundo? Movem o moinho, a mó que tritura e abençoa a vida? Em frente, senhores, um dia depois do outro, pedra sobre pedra, e o cimento da saliva – é preciso muita saliva para dar liga ao pó do mundo.

Ouço os passarinhos cantando, suaves. Ainda posso ouvir os passarinhos apesar dos motores roncando doidos nos meus ouvidos. Lembro-me de quando eu estava doente no hospital, entre a vida e a morte, numa agonia dos diabos, e os motores roncavam a noite toda, ônibus, caminhões, tratores, motos, carros... Eram tratores moendo a noite, moendo a minha alma. Eu nem me lembrava de morrer.

Ouço um cachorro perdido. Deve ser um cachorro perdido. Ganindo solitário, baixinho – é baixinho o ganido que eu ouço, desconsolado só. Chego a imaginá-lo sob uma marquise, sob o viaduto lá longe, inaudível aos meus ouvidos moucos. Loucos, eu o estou ouvindo. Mexe a perna esquerda com dificuldade, a anquinha ferida, tenta se aconchegar num canto, entre o cimento duro e duas pontas de ferro retorcido. E um galo canta. Como se fosse hora de tecer a manhã, essa dura, férrea aurora dos homens.

Falei no hospital. Preciso falar desse monstrengo desconjuntado à minha frente, feio, horroroso... Horroroso é palavra muito feia, mas bonito o monstro cinza, sem cor, sem pintura nenhuma, com as janelas de um verde desbotado querendo ser sinônimo de cor, bonito não é. As visitas dizem: Que bonito! Me perdoe, meu amigo, meu irmão, mas que falta de gosto! Esses três blocos irregulares, com cara de nada. O telhado sujo – sim, eu estou aqui do alto e estou vendo o telhado sujo. Ninguém se importa com o telhado, é invisível, somente os pássaros, os anjos e os aviões passam lá por cima, e esses não se importam? Os pássaros e anjos se importam, e quanto! Têm bom gosto, viram a face de Deus e, por isso, têm alma de poeta. Quem anda de avião não tem tempo para a beleza – ou a feiúra. Estão muito ocupados em não morrer. Viram a terra já de muito alto – sim, tiveram tempo para a beleza – e não querem voltar os olhos para a mesquinharia aqui de baixo.

Mas o hospital é feio. E é um hospital, lugar de morrer. Ninguém pensa num hospital com um lugar onde se está vivendo, ao menos se tratando para viver mais e melhor. Deveria, mas no hospital se morre. Eu já morri três ou quatro vezes num hospital, em nenhuma foi uma doença grave, mas eu morri. Botei sangue pela boca, botei o cérebro num a bandeja e a língua no escarrador. São metáforas, mas são imagens do que se faz no hospital. Depois me digam se isso não é morrer. Quem não passou por isso, passou pela vida em brancas nuvens como no poema, e não viveu, não naquele lugar, que é onde se morre.

Credo! Virei tétrico outra vez. E eu ia falar sobre a vida – mas que é a vida? Porque muito amamos a vida, falamos da morte. Para ressaltar a importância da vida, lembramos que ela acaba. A vida é bela, a vida é bela, isso nem seria preciso dizer. As crianças estão na piscina, abaixo da minha janela, falam e gritam e riem, riem como se a vida fosse um palco iluminado – a piscina de água azul, o sol no céu azul, e nada mais importa no mundo. E eu estou escrevendo porque estou escrevendo. Para dizer: a vida é bela. Não apesar da morte, mas porque é a vida. A vida é bela porque a vida é bela. As dores, as desgraças, a miséria e, enfim, a morte, tudo me diz que a vida é bela.

Outro dia termino o que eu pretendia dizer, se é que eu pretendia dizer alguma coisa. Hoje, disse tudo. A vida é bela, ponto final.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

A pedra

Sou a pedra. Decifra-me ou devoro-te.
Mais que Deus sou benigna com os homens

que não decifram o mistério e morrem
como se não houvesse mais mistério.

Viagem à nascente do rio São Francisco
















Vou conhecer a nascente do São Francisco. Começo por São Roque de Minas, a entrada da Serra da Canastra, berço do rio. Vejo logo o porquê do nome: as montanhas em forma de uma imensa canastra de couro. Saberei que por mais que ande não verei as anfractuosidades próprias das serras: as montanhas se juntam suavemente, harmoniosamente, sem nenhum conflito. Estamos numa geografia de pedras e pedras, mas sem conflito, o mundo concertado com a beleza deste domicílio do homem. Onde o homem está só de passagem. Para contemplar. Mesmo que seja um morador do lugar.

Somos quatro, o Léo, a Danúbia, a Sônia e eu, guiados pelo José Maria, que nasceu neste chão, e tem pedra e água, e bichos e vegetação nos olhos e na alma. Andamos e andamos, a caminhonete sacolejando na estrada irregular, pedregosa, e são pedras a paisagem que vemos: as cercas de pedras costeando os morros, subindo desgraciosas, tirando graça de sua própria falta de graça. Coitados dos escravos que as ergueram, como cercas naturais, baratas, para conter o gado ali criado. Vemos as cercas de longe em longe, depois mais e mais de perto, até aportarmos num Curral de Pedras. Um cercado de pedras que naturalmente se encaixam, sem cimento, barro ou qualquer outra liga. Depois, se erguem divisórias, para separar os bezerros, para ordenhar as vacas.

Comemos a distância, com a poeira esbranquiçada, pó de pedras, através de um campo amarelado pelo sol, pela seca feia deste tempo seco. Em um mês estará coberto de lírios, brilhando ao sol, explica o guia José Maria. E bem mais à frente veremos um campo de margaridas, que florescerão em novembro. A natureza tem o seu calendário, quando irá vestir-se desta ou daquela beleza. Quando irá mostrar a beleza da sua nudez de pedras. Entre as pedras, resistindo à seca brava deste ano, de qualquer ano, as sempre-vivas. Como o nome diz, estarão sempre vivas. Contra a morte de pedra, eternas. E o mais são pedras, pedras, pedras.

Vejo um casal de gaviões-carcará, soberbos, majestosos, enormes, dominando uma elevação de pedra. Dominando este horizonte, que lhes pertence. É o tempo do acasalamento, e veremos vários casais no caminho, reinando grandiosos, imponentes. São belos. Têm uma beleza que impressiona, impõe respeito, uma espécie de veneração, quase sagrada.

O que não impressiona nada, mas impressiona, é o galito. Um pássaro muito pequeno, difícil de ver, como é difícil de encontrar, raridade. Tem uma particularidade que o distingue de todos os outros pássaros: o rabinho vertical, como o leme de um avião. Os outros pássaros têm o rabo deitado, horizontalmente. Ele, não. É como se fosse o leme, que vira para a direita ou esquerda, manobrando o seu vôo minúsculo. Lindo, com seu colorido dourado e azul e sangüíneo – que sei eu?, mal pude vê-lo. Mas adivinho a sua beleza rara, invulgar e preciosa. Na região há cartazes de “Procura-se vivo!” à cata de informações sobre a localização do pato mergulhão, raríssimo. Pois o galito é mais raro. Deus o conserve.

Passamos pela entrada do Capão Forro, que guarda no nome a origem e dor, a escravidão. Somente nessas brenhas inexpugnáveis a liberdade poderia ser intocada, e hastear as suas bandeiras verdes. O verde das árvores, que se vêem aqui e acolá, além e além mais, nos capões esparsos entre os morros de pedra. E o verde dos coqueiros e das palmeiras. O grito verde das maritacas. Os ninhos secos de guaxo, dependurados num só coqueiro, ao vento, oito, dez, doze ninhos esvoaçantes. Uma montoeira de capim e pêlos de animais, balançando-se no ar, num desequilíbrio que desafia o perigo e permanece. E o vôo negro e vermelho dos guaxos a protegê-los. Os guaxos também são de uma beleza inaudita, no seu vôo furioso, protetor.

Dependurado de uma árvore à beira da estrada, bem maior, um ninho de graveteiro. O nome já diz, graveteiro. Faz o ninho, não de capim, com a aparência de ordem dos outros ninhos, mas de gravetos. Um emaranhado de gravetos, pedaços irregulares de pau, intrincados, numa desordem calculada, que lhe dá estabilidade. Um diferencial: o ninho é a sua casa. Os pássaros fazem ninhos para pôr os ovos, e chocá-los, certo. O graveteiro faz o ninho para morar. Semelhante a ele apenas o joão-de-barro, que também faz a sua casa para morar.

Não vimos nenhum lobo-guará, que não é raro. Mas vimos um tamanduá. Calmo, sossegado, cruzou a frente da caminhonete. Indiferente ao perigo, como se não tivesse nenhum medo, como se nos ignorasse. Ligeiro, porém. Sumiu-se, rápido. Tamanduá-bandeira, grande, os braços pensos, quase arrastando-se no chão. Mais um senhor deste sertão.

Por fim chegamos ao grande senhor, o príncipe infante, a dar os seus primeiros vagidos em seu berço verde. O rio São Francisco. Dois filetes de água que se encontram, vêm formar um riacho, que se vai, deslizando entre as pedras. Chegamos à beira de uma mina, do que poderia ser uma mina comum, empoçada entre a vegetação do cerrado, um olho d’água borbulhando, com seu exército de girinos à flor nadando, fazendo evoluções. Aqui nasce o grande rio. Enorme, descomunal, tem aqui o seu berço privilegiado, aqui geme os seus vagidos de uma dorzinha que encanta, como encantam os bebês, aqui começa a engatinhar, inseguro, não sabendo ainda quão poderoso será.

Dezesseis quilômetros à frente ainda é um riozinho que poderia ser atravessado com poucos passos, que tem um ou outro poço mais fundo, entre as pedras. Um rio pequeno ainda. Mas já com um bom volume de água. Esconde o volume, não se diria que tanta água explodiria na Cachoeira Casca d’Anta. Subimos as pedras da cachoeira, uma encosta íngreme, difícil, que nos fez pôr os bofes de fora, mas não perigosa. Lá embaixo o panorama de montanhas e vales, e o rio entre as pedras, vêem-se as pedras douradas, sob as águas, longe, cada vez mais longe. Sob nós, a cachoeira. Como um pulmão, a cachoeira explode. Como um canhão d’água arrebentando do meio das pedras da montanha. A água projeta-se no ar, e, de repente, cai de uma altura de uns duzentos metros. Nasceu o rio São Francisco.

Um detalhe. O nome Casca d’Anta foi dado ao lugar onde havia uma árvore com excelentes propriedades descobertas graças à anta, que nela vinha se coçar. É de onde o rio se projeta para o mundo. De uma árvore. Tem as suas raízes numa árvore. Que siga o seu destino natural como o destino das árvores, que muitas vezes são mortas pelo homem. Não matemos o rio. Transposição? Que o rio siga o seu curso natural, prodigalizando o dom da vida por onde passa. Salve, São Chico.