quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A casa de Portinari

Fotografei uma foto da casa de Portinari. Depois saí à rua e fotografei duas vezes a casa mesmo, a casa em carne e osso. A primeira ficou uma boa foto, como se fosse a casa real fotografada. Mas foi preciso fotografar duas vezes, para ter certeza, a casa em carne e osso, a casa como a alma de Portinari.

É emblemático. A casa conserva a alma do pintor. As fotos dizem pouco, quase nada. É preciso entrar na casa, esbarrar nos móveis, nos objetos, nos utensílios... Lembrar, com Drummond, que as almas penadas esbarram nos móveis. Você sabe que não há almas penadas vagando por aí, muito menos ali, mas a alma de Portinari está presente. Ela esbarra em você, guia seus olhos, suas emoções.

Você esbarra nas telas, nas pinturas nas paredes, nos pincéis, nos tubos de tinta. Ah, não é bom falar em tubos de tinta: você se lembra dos versos de Portinari no fim de um pequeno texto em prosa:

“A morte será colorida?
De que cor será a outra vida?”

Você se lembra, com dor, que o artista morreu de amor à sua arte. De obsessão pela sua arte. Já prevenido de que não deveria abusar das tintas, depois de sofrer grave intoxicação, não parou de pintar. Tinha uma encomenda de vários quadros, tinha a obsessão da criação, precisava criar, custasse o que custasse, até a própria vida. A arte matou-o.

A casa está lá. Logo na entrada a sua pintura de “São Jorge e o dragão”, acima de uma porta, e o poema explicando-a. Explicação ingênua, com a cor e o espanto da infância. Depois, um quarto com seu livro, seus poemas nas paredes, coloridos, com a cor e o espanto da infância.

Os seus versos são capengas. Era um extraordinário pintor, não um poeta. Lembro-me, quase malvadamente, de um conto de Agustina Bessa Luís. Basta o título: “Apenas um poeta manco”. Candinho era o poeta das tintas. Com as tintas não mancava. Era o poeta da cor, das formas leves, que pairavam no ar. Pintava o sonho. Com que graça pintava o sonho!

Construiu no quintal a “Capela da Nonna”. Pequenina, para caber apenas a sua nonna. O Coração de Jesus e o Coração de Maria à frente. Dos lados, o anjo Gabriel e Santo Antônio, São Francisco, São Sebastião. Leves. Candinho conhecia a religião da leveza. As cores claras, as formas nítidas, leves. Candinho pintava a paz.

Na Igreja Matriz de Batatais, ali perto da sua Brodósqui, Candinho pintou seis belos murais. Deixou o Deus cruel para os renascentistas, que tinham o fogo do inferno na garganta e serpentes peçonhentas nos olhos. Candinho pintou figuras leves. Inventou a religião da leveza. A religião no tempo dele ainda era pesadona. Não a dele. As figuras pairavam no ar, como se estivessem em êxtase. A “Fuga para o Egito” ou “Jesus carregando a cruz”. José e Maria deveriam estar cansados, abatidos, apavorados. Cristo deveria estar sofrendo uma dor imensa. Quando Candinho pinta, estão mais leves do que se estivessem em êxtase.

Não que Portinari não pintasse a dor. Diante da tela “Os retirantes”, no Masp, quase sentia os ossos daquelas figuras doídas estralando, quase sentia respingar sangue por cima de mim. Mas as figuras religiosas Candinho pintou com leveza. Candinho é o menino dos sonhos leves da sua infância. Como se um anjo o carregasse nos braços, como se um anjo guiasse suas mãos para pintar o sonho. Leve, aéreo, celeste. Celestial.

Mas eu não quis falar de uma sala da casa de Portinari. O seu estúdio. É o lugar mais triste da casa. Vejo Candinho que se afasta, com o pincel em punho. Apóia-se numa perna, ergue o pincel, e mede a tela. Mede uma figura invisível na tela. Candinho é uma figura invisível no estúdio vazio. Candinho faz uma falta danada no estúdio vazio.

O estúdio é o lugar mais triste da casa. Candinho não está lá. Falei que a casa conserva a alma de Portinari. Mas o estúdio está frio demais. Sem cor. Há cor em todos os cômodos da casa. Menos no estúdio. Lembro, com dor no peito, os versos de Portinari:

“A morte será colorida?
De que cor será a outra vida?”

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Aliança Eterna

Vejo o sangue correndo sobre a pedra,
vejo o sangue inundando a terra inteira.
O sangue escorre dentro do universo,
lava os ossos de todos os homens mortos.

Limpa todos os ossos do caminho,
vai até os ossos do primeiro Adão.
É o sangue do novo Adão, o Cristo.
A aliança eterna foi autenticada.

Jesus, o ungido da mansão do Pai,
veio ungir o homem no óleo do seu sangue.
Deus é fiel à aliança com Abraão.

Se a fraqueza do homem quebra a aliança,
Cristo lança a âncora com a sua cruz
e ergue a aliança eterna, sempre nova.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Epitáfio

Tinha uma pedra no meio do caminho.
Agora estou debaixo dela.

As águas do eterno

As águas correm, correm para sempre.
Sou só, sou a paisagem verde e Deus.
Uma garça branca pousa na margem do rio.
O sol pousa no horizonte vermelho.
Por que contemplar? Por que a luz, o êxtase?
Além do horizonte ergue-se um novo horizonte.

A árvore se transfigura, como Cristo.
A árvore sofre, agoniza, como Cristo.
Os frutos pendem da árvore, como pássaros maduros.
Colho os frutos e canto e conheço.
Como o sol, as águas correm para sempre.

A terra seca, o deserto onde não medra a semente.
Não edifico a minha casa nessa terra.
Este é o campo da penumbra.
Este é o campo da penúria, do silêncio seco de Deus.
Preciso de água para a minha argila.
Preciso de argila para o meu cântaro.
Preciso do cântaro para a minha face.
Modelo a minha face à imagem da face de Deus.
As águas correm para sempre.
Onde as águas que correm para sempre?

As vigas da minha casa estão podres.
Onde a palavra nova que sustente a minha casa?
Ouça o vento, que enferruja o arado.
Ouça o lamento dos sulcos, que esperam a semente.
Ouça a semente amarga florindo no meu túmulo.
As águas fluem, os horizontes fluem.
O pássaro e o trigo fluem, com a terra amarga.
No princípio era o verbo, eram os alvos lençóis.
No princípio eram as águas.
No princípio eram as garças brancas sobre as águas.
E as águas correm para sempre.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O TÚMULO Nº 1

João Pincke sobe a colina do Cemitério da Saudade com as costas curvadas. Os pedreiros e carpinteiros ainda estão construindo o cemitério: os muros altos, os dois portões, as ruas onde se alinharão os túmulos, um oratório com uma torre encimada por uma cruz de bronze, onde se rezará a missa de inauguração e onde se abrirá a primeira sepultura.

João Pincke conversa com os carpinteiros e pedreiros, pergunta, insiste, e eles respondem que não, fazem muitos gestos negativos com a cabeça. Respondem às perguntas do outro, gentilmente, como se não tivessem nada mais a fazer no mundo.

A mulher no sopé do morro, invisível quase, na distância, toda tarde vê com pouco caso o marido subindo a encosta, e resmunga: Oras! O homem sumia-se na entrada do cemitério, com a sua corcunda de maldades, e tanto fazia que voltasse ou não voltasse. O homem sumia-se, com a sua esquisitice, e logo estaria de volta para continuar com a esquisitice de todo dia.

João Pincke dava as costas à cidade, que crescia ao léu, e subia a encosta de alma leve: levava cada vez menos peso, logo estaria livre. A mulher olhava-o, burro de carga empacando na subida, e dava de ombros: Mais dia, menos dia, empaca de vez. E os dias passavam-se, um depois do outro, o homem subindo a estrada de areia branca, cada vez mais pesada, embora de alma leve, e a mulher respondendo-lhe com um muxoxo: Oras!

João Pincke doara o terreno para ser construído o cemitério da cidade e, como bom zelador de sua doação, todos os dias ia verificar as obras, e perguntava se estava pronto. Era o que se pensava.

Na centésima ou centésima primeira subida, tinham sido uns cem dias, os pedreiros atrapalhando-se ainda com a massa e com as pás e as enxadas e os tijolos, os malditos tijolos, esfregaram as mãos, satisfeitos: Está pronto o cemitério.

Foi como a sentença final do juiz, a condenação: Enforque-se. Estava lavrada a sentença, não havia escapatória. João Pincke, no alto do morro, olha a cidade pela última vez. Estava imerso em sua solidão. Um homem e o universo. Um homem e o seu destino.

A corda no pescoço, o peso do corpo, o vácuo, a dor, uma dor enorme, sufocando, como se o peito fosse arrebentar; depois, a ausência da dor; e, enfim, mais nada.

A imagem do homem enforcado à luz da lua, no portal do cemitério. O olho aberto refletindo a primeira estrela; o outro, vazado, escorrendo pela face dura. Mostrando a língua para a cidade que o recebera e iria repeli-lo, como a um filho indigno.

Olha a cidade com um olho só, e não se poderia saber se era esse olho que chorava, ou o outro.

Sempre alguém chora por nós; nunca se sabe. À direita de quem entra pelo portão principal do Cemitério da Saudade, o mais antigo da nossa cidade, a doze passos bem medidos, entre a primeira e a segunda ruas de túmulos, está uma pequena construção muito antiga, um oratório encimado por uma cruz de bronze. Na soleira, em letras mal legíveis, está escrito: “João Pincke – 26/06/1908 – Saudades de sua esposa”.

Um homem sempre merece, pelo menos, as lágrimas da morte. Talvez a mulher tenha sentido um alívio com a morte do marido; talvez tenha chorado lágrimas verdadeiras; talvez um sentimento de pesar, de uma mágoa sem remédio a tenha levado a mandar escrever aquelas palavras: “Saudades de sua esposa”.

domingo, 9 de setembro de 2007

O pranto de Ulisses

Ulisses na ilha chorando seus companheiros mortos
espalhados pela praia como flores murchas ao sol.

Ulisses se inclina e geme de dor.
Tem sangue na face e tem sangue nas mãos.

O pranto não se interrompe. Nem quando recolhe os mortos
e os amontoa numa pira: o fogo purifica, a dor continua.

Uma rosa bóia, entre as pedras, num lago de sangue;
Ulisses leva aos lábios e beija,

no sangue da rosa, a dor dos companheiros mortos.

O deserto de Deus

Eu não vejo Deus na areia do deserto.
Eu não vejo Deus na noite escura da minha alma.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O menino a cavalo

O poema é de Alberto da Costa e Silva, um dos maiores poetas brasileiros, embora ninguém saiba disso, nem ele próprio faz questão de que alguém saiba. Mas eu não pretendo falar do poeta, nem analisar o seu poema. O meu objetivo é mais ao rés do chão, a matéria da crônica é como a tiririca, se esparrama por onde quer. Eu quero só bulir com a memória, bulindo com as imagens do poema. Ah, memória, louca da casa, velha desmiolada, que por mor dos pesares não bate bem, nem poderia bater para fazer jus ao seu título, à sua coroa sem cabeça a coroar.

Leio que García Márquez viveu oito anos em Aracataca, e foi o bastante para criar Macondo e uma leva enorme de personagens. Eu vivi os mesmos oito anos num pedaço de terra chamado Matão e não tenho história nenhuma para contar. Tenho para mim que Garcia Márquez ouviu muitas histórias, da mãe e de outros parentes, deixou que a louca da casa espanasse e empoeirasse causos e gentes e, sem que ele desse por isso, se fizeram na cabeça dele as histórias que contou como se fossem dele, memórias dele.

Eu tenho cabeça fraca, de modo algum tenho língua de contador, talvez me sobrem umas visagens, apenas, e com tais visagens, reais ou inventadas pela minha louca endiabrada, posso criar umas quantas imagens, com elas uns quantos poemas. Às vezes as imagens são tão reais que me dizem: Como você se lembra! Não me lembro, não. Invento a verdade. A emoção é verdadeira, só a memória é inventada. Tanto que ninguém acha que é mentira. A invenção nunca é mentira.

Mas o poema “O menino a cavalo” começa com a beleza de uma lua na porta, como as muitas luas da minha infância, entre os galhos das árvores, entre os coqueiros no pasto. Embora fale da lua do selim.

As mãos grudadas no arreio vêm bem a propósito. Embora o homem fale em seguida das rédeas, meio canhestramente: se as mãos estavam grudadas no arreio, como estariam sofreando com as rédeas o monjolo do tempo? O caso é que não é o homem, mas o poeta quem fala das rédeas, ou não falaria dessa beleza de monjolo e tempo.

Monjolo eu não conheci, não me lembro de nenhum, mas a desmiolada que vive na minha cachola inventou dezenas e centenas de monjolos, posso sentir a roda-d’água me lavando o corpo e a alma, e o pilão pilando, não o milho do fubá, mas o milho do tempo.

Pasto e barro não preciso inventar, me lembro de tanto pasto verde, de tanta terra vermelha, que emerjo sem perceber numas madrugadas orvalhadas, puro como o chilreio da passarada, virginal como o primeiro homem da criação.

Sinto-me curvado com o poeta pelo peso das coisas. Esse é já um ato de homem, de dor, de acabrunhamento. Podem ser boas as coisas do passado, mas quando renascem sobre os ombros do homem maduro, ele já não tem forças para carregá-las.

Não importa que diga que nada mudou. Como mudou! É a mesma a paisagem? O gado e o cacto são do mesmo menino? Nem o menino é já o mesmo! O poeta guarda a folhagem do passado enterrada em si, e chora. Por que chora? Porque enterrada, e, portanto, morta. Não tem por que dizer que não se achou depois. Foi a sua ausência que saltou no estribo e partiu para jamais.

A ausência é um troço incorpóreo, mas montou a cavalo e cavalga, infelizmente para fora do cenário. Diz que o potro pisa a marca dos seus passos, até o cavalo rejuvenesceu, é potro, mas pisa a marca de que passos? Já não afirmou que é a ausência que cavalga? É o nada que cavalga.

As águas fluíam, ainda estão fluindo. Levam a infância nelas, para muito longe, para bem perto do meu coração. O longe é sempre perto do coração.

A vida é um desenho breve, uma paisagem de nada, suspensa sobre o abismo. O poeta fala de um abacate sem semente, o bojo onde vivemos, de onde vislumbramos o céu, prenúncio do escuro da morte. O céu das nossas pálpebras. Como no céu das nossas pálpebras o escuro da morte? No entanto, a imagem é boa.

Daí, a orfandade de estar vivo. Certo, sempre perdemos alguém. Estou vivo enquanto alguém não está. Sempre algo finda na nossa viagem pela vida. Sempre as nossas palavras se transformam em silêncio.

O poeta diz bem: a rotina de estar morto! Contemplar a própria morte nas rugas, na barba, nas unhas que crescem. Mesmo depois de morto, ainda crescem.

O pai do poeta desenha o menino a cavalo e acena-lhe. É um adeus doído, abissal. É o pai quem parte enquanto desenha e acena ao menino a cavalo.

Vivemos de adeuses. Não é que eu goste de falar da morte. Esconjuro a morte quando falo dela. As palavras não fazem se materializar a coisa. As palavras repetem que a coisa são só palavras. Não tem existência, é nada, a morte. Palavras, palavras.

O poeta está junto ao pai, morto. O poeta-menino. Só volta nesse embalo das palavras. O poeta e o pai revivem nas imagens que as palavras criam. As palavras, que são nada.

Muitas vezes, sempre, ouço a voz do meu pai. É uma voz forte, pausada, cheia. O meu pai não sabia desenhar, ele falava. A sua voz criava o mundo. Ele não sabia que era um poeta: criava com as palavras. Como Deus, o primeiro poeta.

terça-feira, 4 de setembro de 2007