quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Êxtase

Quando voltou, a mulher
estava transformada em pedra.

E sorria, não com os lábios
nem com os olhos, mas com a alma

que se elevava do seu corpo
de pedra.

Um sino de ouro tocava.

Contemplação de Ouro Preto

Começo a minha peregrinação pela Igreja Nossa Senhora do Carmo, projetada pelo pai do Aleijadinho, que a terminou, e fez o altar lateral de São João Batista e o de N. Sra. da Piedade, além do Lavabo da Sacristia. Que Santo Furor moveu a mão desse artista sofredor? Que Fé moveu a cobiça desse povo – a Santa Fé que move montanhas, extraindo o ouro das suas entranhas – para erguer esses monumentos dignos somente de Deus?

Falei que comecei a minha peregrinação – porque foi uma peregrinação que eu empreendi, uma caminhada buscando um lugar que somente a fé explica, que foi a fé e sua força tamanha, e suas contradições, que ergueu. Qual é a jóia mais preciosa do universo? O homem quer erguer templos preciosos como uma jóia, que se multiplica, para chegar a Deus, a jóia mais preciosa.

Mas preciso caminhar, e entro no Museu da Inconfidência, solene e algo misterioso. Cada passo que dou neste lugar é um passo rumo ao incógnito, lá onde mora o tempo com suas barbas antiqüíssimas. Vou separar duas imagens deste museu, não quero falar muito. A primeira são os madeiros do cadafalso de Tiradentes. Quase escrevo da cruz, que foi numa cruz que primeiro pensei quando vi os estranhos madeiros, cruzando-se como as traves de uma cruz. Não foi à toa que representaram Tiradentes como a figura de um Cristo, com longas vestes e barbas, e o olhar sofredor, nesta terra de tantos Cristos agoniados.

A segunda imagem é a do Pelicano Eucarístico, que vi novamente no Seminário São José, em Mariana. O pelicano é bem o símbolo de Cristo, que deu o próprio sangue pelos seus filhos. Lembro-me do poema que tive a ousadia de cometer: “Pelicano”: “Abro o peito/ para o meu filho, o poema.” Há algo de elevado, de sagrado no poema. Poderia muito bem ser um pleito ao divino. Mas seu eu soubesse dessa simbologia crística, teria vergonha de escrever esse poema.

Volto a Tiradentes. Na praça, em frente ao museu, o monumento aos Inconfidentes. E a lembrança: neste lugar ficou exposta à execração pública a cabeça de Tiradentes. Nenhuma explicação –– todos sabemos da degola do cadáver, do esquartejamento, a cabeça e o corpo e membros salgados para que se conservassem, e que todos aprendessem a lição: Este é o destino de quem se levanta contra a coroa. Pouco importa quem foi Tiradentes, o quanto de herói ou fantoche foi. Lembro quanto pode ser cruel o homem, bestial. E querem que Deus ou a História nos perdoem. Bestiais.

Volto à paz na Igreja de São Francisco de Assis, do amor aos animais, da humildade, e tanta que tem sempre nas mãos uma caveira: Somos nada, todos nos nivelaremos quando formos caveiras. Por isso no seu poema mais famoso, o Cântico ao Sol, também conhecido como Hino à Vida – é um hino à vida! –, lemos este verso singelo e terrível (que eu emprestei para usar num poema meu, não sou original): “Louvada seja a morte, nossa irmã.”

Desço mais alguns passos – ah, quanto descer e subir ladeira! Como têm boas pernas os mineiros, ou como têm santidade, segundo uma companheira de peregrinação... Mas desço alguns passos, sofridos, doídos, que não tenho pernas tão boas, e muito menos santidade, e chego à Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de Baixo, que há mais igrejas dedicadas a N. S. das Mercês, que mercês do Alto é o que mais se precisava nesta terra de infortúnio). É uma igreja pobre, o teto apresenta buracos, as tábuas podres ao abandono. Chego na hora da bênção final do bispo, que celebra a missa com o povo simples do lugar.

Irei participar da celebração eucarística – do começo ao fim! – na Igreja Nossa Senhora da Conceição. É preciso dar graças a Deus por estar aqui, por este mergulho na história, que é quase um mergulho no mistério. Quase, digo, porque mistério é o nome de Deus. Mas não mergulhamos no mistério, em Deus? Que o Altíssimo me perdoe, mas o homem é um bicho tão pequeno e quer voar até o Absoluto. E quem me garante que não voa? Ou mergulha. Saio banhado, senão de ouro, pelo menos de luz. Tanto que pensei em dar a esta crônica o título de Êxtase em Ouro Preto – porque Contemplação já é o nome do livro de poemas de Murilo Mendes, como se eu me atrevesse a ir além de um dos maiores poetas brasileiros e estupendo poeta religioso.

No dia seguinte, sou enviado a mais uma celebração do Mistério Eucarístico, na Igreja N. S. do Pilar. É a mais rica das igrejas que vi, essa e a Catedral da Sé, em Mariana. O Padre Simões permite algumas fotos, lembrando várias vezes, durante a missa e depois, do povo peregrino de Bauru. Lembra-nos da íntima ligação entre a arte e a fé, que não podemos ver apenas o aspecto material, a riqueza das igrejas. Não precisava, querido padre, eu sei que a fé e a arte são manifestações do espírito do homem, é com a arte que eu dou uma forma visível ao que eu tenho de espiritual, de que a fé faz parte. As obras do Aleijadinho, de Mestre Ataíde e de outros artistas são a forma concreta de sua fé, retratam a fé do seu tempo, com todo o seu estranhamento. Mas o que não é estranho neste mundo? O vulgar? Se o espírito for estranho, estou cansado de facilidades vulgares e, portanto, não tenho como não escolher o estranho e difícil campo do espírito.

sábado, 13 de outubro de 2007

O menino morto

A pedra sangrava coberta de flores,
o silêncio dentro.

O sangue fluía dos olhos da pedra,
o menino morto dentro.

Um cachorro sofre ao lado,
vai-se transformar em pedra.

O silêncio da pedra

A pedra fez silêncio.
A árvore deixou cair uma folha,
uma fruta, um pássaro.
A folha pairava no ar, voava.
A fruta se esborrachou na pedra.
O pássaro pousou ao lado para comer a fruta.
Bicava o silêncio.
Canto fica para depois.
Agora a fruta, o chão verde,
com poças d’água.
A água é vermelha e uma libélula beija.
Um menino caminha sozinho e chora
uma lágrima quieta.
A pedra faz silêncio
para ouvir a lágrima do menino.
O menino ergue o braço, o dedinho.
O pássaro vem sentar no dedinho, abre o bico,
mas faz silêncio, aprendeu com a pedra.

Panorama visto da ponte

Abro a janela e vejo o horizonte, onde a terra acaba e o céu começa. Não sei olhar para perto, quero abarcar todo o universo. Onde a terra acaba são casas, é a cidade que vai até o fim do mundo. Vai e não sabe bem se ali terminou, se continua. São casas esparsas, são amontoados de casas. É o verde por entre as casas, é o verde, sempre o verde. Até onde vai a cidade? Quando não é mais o verde, é o céu azul. É o céu com todas as cores, mesmo que não seja ao crepúsculo. O carmesim, o violeta, os vários tons, melhor, as várias cores do azul.

Agora é hora de sol. Dá-me na cara, cega-me, embaça-me os olhos. Tanto sol, e tanta secura. Seco na pele, na língua, nos olhos, na alma. Dói, arrebenta, quebra, parte-se – a pele, a retina, a sensibilidade. É uma palavra muito delicada, a sensibilidade, e parte-se. Como pétalas de cristal, caídas no piso frio, com um brilho quase de sangue. Meu Deus! A que me levam as palavras, frias, minerais, como as queria o poeta frio e mineral. Ah, poesia. Nem a pedra é fria, tem alma e sangue dentro.

Ergo os olhos e vejo a fumaça, cheiro a fumaça – gosta de queimar, esse povo. Queimaria as fuças, se pudesse. Queimam o próprio rabo, que não vêem. Deleito-me xingando a populaça, como se resolvesse. Melhor xingar o governo, os empresários, que também são governo. Queimamos o ar que respiramos, nós, povo simples, e a elite da tropa do governo.
Pois é, também eu falei no filme que está dando o que falar e no fim vai ficar nisso aí mesmo: palavras. Não são as palavras que movem o mundo? Movem o moinho, a mó que tritura e abençoa a vida? Em frente, senhores, um dia depois do outro, pedra sobre pedra, e o cimento da saliva – é preciso muita saliva para dar liga ao pó do mundo.

Ouço os passarinhos cantando, suaves. Ainda posso ouvir os passarinhos apesar dos motores roncando doidos nos meus ouvidos. Lembro-me de quando eu estava doente no hospital, entre a vida e a morte, numa agonia dos diabos, e os motores roncavam a noite toda, ônibus, caminhões, tratores, motos, carros... Eram tratores moendo a noite, moendo a minha alma. Eu nem me lembrava de morrer.

Ouço um cachorro perdido. Deve ser um cachorro perdido. Ganindo solitário, baixinho – é baixinho o ganido que eu ouço, desconsolado só. Chego a imaginá-lo sob uma marquise, sob o viaduto lá longe, inaudível aos meus ouvidos moucos. Loucos, eu o estou ouvindo. Mexe a perna esquerda com dificuldade, a anquinha ferida, tenta se aconchegar num canto, entre o cimento duro e duas pontas de ferro retorcido. E um galo canta. Como se fosse hora de tecer a manhã, essa dura, férrea aurora dos homens.

Falei no hospital. Preciso falar desse monstrengo desconjuntado à minha frente, feio, horroroso... Horroroso é palavra muito feia, mas bonito o monstro cinza, sem cor, sem pintura nenhuma, com as janelas de um verde desbotado querendo ser sinônimo de cor, bonito não é. As visitas dizem: Que bonito! Me perdoe, meu amigo, meu irmão, mas que falta de gosto! Esses três blocos irregulares, com cara de nada. O telhado sujo – sim, eu estou aqui do alto e estou vendo o telhado sujo. Ninguém se importa com o telhado, é invisível, somente os pássaros, os anjos e os aviões passam lá por cima, e esses não se importam? Os pássaros e anjos se importam, e quanto! Têm bom gosto, viram a face de Deus e, por isso, têm alma de poeta. Quem anda de avião não tem tempo para a beleza – ou a feiúra. Estão muito ocupados em não morrer. Viram a terra já de muito alto – sim, tiveram tempo para a beleza – e não querem voltar os olhos para a mesquinharia aqui de baixo.

Mas o hospital é feio. E é um hospital, lugar de morrer. Ninguém pensa num hospital com um lugar onde se está vivendo, ao menos se tratando para viver mais e melhor. Deveria, mas no hospital se morre. Eu já morri três ou quatro vezes num hospital, em nenhuma foi uma doença grave, mas eu morri. Botei sangue pela boca, botei o cérebro num a bandeja e a língua no escarrador. São metáforas, mas são imagens do que se faz no hospital. Depois me digam se isso não é morrer. Quem não passou por isso, passou pela vida em brancas nuvens como no poema, e não viveu, não naquele lugar, que é onde se morre.

Credo! Virei tétrico outra vez. E eu ia falar sobre a vida – mas que é a vida? Porque muito amamos a vida, falamos da morte. Para ressaltar a importância da vida, lembramos que ela acaba. A vida é bela, a vida é bela, isso nem seria preciso dizer. As crianças estão na piscina, abaixo da minha janela, falam e gritam e riem, riem como se a vida fosse um palco iluminado – a piscina de água azul, o sol no céu azul, e nada mais importa no mundo. E eu estou escrevendo porque estou escrevendo. Para dizer: a vida é bela. Não apesar da morte, mas porque é a vida. A vida é bela porque a vida é bela. As dores, as desgraças, a miséria e, enfim, a morte, tudo me diz que a vida é bela.

Outro dia termino o que eu pretendia dizer, se é que eu pretendia dizer alguma coisa. Hoje, disse tudo. A vida é bela, ponto final.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

A pedra

Sou a pedra. Decifra-me ou devoro-te.
Mais que Deus sou benigna com os homens

que não decifram o mistério e morrem
como se não houvesse mais mistério.

Viagem à nascente do rio São Francisco
















Vou conhecer a nascente do São Francisco. Começo por São Roque de Minas, a entrada da Serra da Canastra, berço do rio. Vejo logo o porquê do nome: as montanhas em forma de uma imensa canastra de couro. Saberei que por mais que ande não verei as anfractuosidades próprias das serras: as montanhas se juntam suavemente, harmoniosamente, sem nenhum conflito. Estamos numa geografia de pedras e pedras, mas sem conflito, o mundo concertado com a beleza deste domicílio do homem. Onde o homem está só de passagem. Para contemplar. Mesmo que seja um morador do lugar.

Somos quatro, o Léo, a Danúbia, a Sônia e eu, guiados pelo José Maria, que nasceu neste chão, e tem pedra e água, e bichos e vegetação nos olhos e na alma. Andamos e andamos, a caminhonete sacolejando na estrada irregular, pedregosa, e são pedras a paisagem que vemos: as cercas de pedras costeando os morros, subindo desgraciosas, tirando graça de sua própria falta de graça. Coitados dos escravos que as ergueram, como cercas naturais, baratas, para conter o gado ali criado. Vemos as cercas de longe em longe, depois mais e mais de perto, até aportarmos num Curral de Pedras. Um cercado de pedras que naturalmente se encaixam, sem cimento, barro ou qualquer outra liga. Depois, se erguem divisórias, para separar os bezerros, para ordenhar as vacas.

Comemos a distância, com a poeira esbranquiçada, pó de pedras, através de um campo amarelado pelo sol, pela seca feia deste tempo seco. Em um mês estará coberto de lírios, brilhando ao sol, explica o guia José Maria. E bem mais à frente veremos um campo de margaridas, que florescerão em novembro. A natureza tem o seu calendário, quando irá vestir-se desta ou daquela beleza. Quando irá mostrar a beleza da sua nudez de pedras. Entre as pedras, resistindo à seca brava deste ano, de qualquer ano, as sempre-vivas. Como o nome diz, estarão sempre vivas. Contra a morte de pedra, eternas. E o mais são pedras, pedras, pedras.

Vejo um casal de gaviões-carcará, soberbos, majestosos, enormes, dominando uma elevação de pedra. Dominando este horizonte, que lhes pertence. É o tempo do acasalamento, e veremos vários casais no caminho, reinando grandiosos, imponentes. São belos. Têm uma beleza que impressiona, impõe respeito, uma espécie de veneração, quase sagrada.

O que não impressiona nada, mas impressiona, é o galito. Um pássaro muito pequeno, difícil de ver, como é difícil de encontrar, raridade. Tem uma particularidade que o distingue de todos os outros pássaros: o rabinho vertical, como o leme de um avião. Os outros pássaros têm o rabo deitado, horizontalmente. Ele, não. É como se fosse o leme, que vira para a direita ou esquerda, manobrando o seu vôo minúsculo. Lindo, com seu colorido dourado e azul e sangüíneo – que sei eu?, mal pude vê-lo. Mas adivinho a sua beleza rara, invulgar e preciosa. Na região há cartazes de “Procura-se vivo!” à cata de informações sobre a localização do pato mergulhão, raríssimo. Pois o galito é mais raro. Deus o conserve.

Passamos pela entrada do Capão Forro, que guarda no nome a origem e dor, a escravidão. Somente nessas brenhas inexpugnáveis a liberdade poderia ser intocada, e hastear as suas bandeiras verdes. O verde das árvores, que se vêem aqui e acolá, além e além mais, nos capões esparsos entre os morros de pedra. E o verde dos coqueiros e das palmeiras. O grito verde das maritacas. Os ninhos secos de guaxo, dependurados num só coqueiro, ao vento, oito, dez, doze ninhos esvoaçantes. Uma montoeira de capim e pêlos de animais, balançando-se no ar, num desequilíbrio que desafia o perigo e permanece. E o vôo negro e vermelho dos guaxos a protegê-los. Os guaxos também são de uma beleza inaudita, no seu vôo furioso, protetor.

Dependurado de uma árvore à beira da estrada, bem maior, um ninho de graveteiro. O nome já diz, graveteiro. Faz o ninho, não de capim, com a aparência de ordem dos outros ninhos, mas de gravetos. Um emaranhado de gravetos, pedaços irregulares de pau, intrincados, numa desordem calculada, que lhe dá estabilidade. Um diferencial: o ninho é a sua casa. Os pássaros fazem ninhos para pôr os ovos, e chocá-los, certo. O graveteiro faz o ninho para morar. Semelhante a ele apenas o joão-de-barro, que também faz a sua casa para morar.

Não vimos nenhum lobo-guará, que não é raro. Mas vimos um tamanduá. Calmo, sossegado, cruzou a frente da caminhonete. Indiferente ao perigo, como se não tivesse nenhum medo, como se nos ignorasse. Ligeiro, porém. Sumiu-se, rápido. Tamanduá-bandeira, grande, os braços pensos, quase arrastando-se no chão. Mais um senhor deste sertão.

Por fim chegamos ao grande senhor, o príncipe infante, a dar os seus primeiros vagidos em seu berço verde. O rio São Francisco. Dois filetes de água que se encontram, vêm formar um riacho, que se vai, deslizando entre as pedras. Chegamos à beira de uma mina, do que poderia ser uma mina comum, empoçada entre a vegetação do cerrado, um olho d’água borbulhando, com seu exército de girinos à flor nadando, fazendo evoluções. Aqui nasce o grande rio. Enorme, descomunal, tem aqui o seu berço privilegiado, aqui geme os seus vagidos de uma dorzinha que encanta, como encantam os bebês, aqui começa a engatinhar, inseguro, não sabendo ainda quão poderoso será.

Dezesseis quilômetros à frente ainda é um riozinho que poderia ser atravessado com poucos passos, que tem um ou outro poço mais fundo, entre as pedras. Um rio pequeno ainda. Mas já com um bom volume de água. Esconde o volume, não se diria que tanta água explodiria na Cachoeira Casca d’Anta. Subimos as pedras da cachoeira, uma encosta íngreme, difícil, que nos fez pôr os bofes de fora, mas não perigosa. Lá embaixo o panorama de montanhas e vales, e o rio entre as pedras, vêem-se as pedras douradas, sob as águas, longe, cada vez mais longe. Sob nós, a cachoeira. Como um pulmão, a cachoeira explode. Como um canhão d’água arrebentando do meio das pedras da montanha. A água projeta-se no ar, e, de repente, cai de uma altura de uns duzentos metros. Nasceu o rio São Francisco.

Um detalhe. O nome Casca d’Anta foi dado ao lugar onde havia uma árvore com excelentes propriedades descobertas graças à anta, que nela vinha se coçar. É de onde o rio se projeta para o mundo. De uma árvore. Tem as suas raízes numa árvore. Que siga o seu destino natural como o destino das árvores, que muitas vezes são mortas pelo homem. Não matemos o rio. Transposição? Que o rio siga o seu curso natural, prodigalizando o dom da vida por onde passa. Salve, São Chico.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A casa de Portinari

Fotografei uma foto da casa de Portinari. Depois saí à rua e fotografei duas vezes a casa mesmo, a casa em carne e osso. A primeira ficou uma boa foto, como se fosse a casa real fotografada. Mas foi preciso fotografar duas vezes, para ter certeza, a casa em carne e osso, a casa como a alma de Portinari.

É emblemático. A casa conserva a alma do pintor. As fotos dizem pouco, quase nada. É preciso entrar na casa, esbarrar nos móveis, nos objetos, nos utensílios... Lembrar, com Drummond, que as almas penadas esbarram nos móveis. Você sabe que não há almas penadas vagando por aí, muito menos ali, mas a alma de Portinari está presente. Ela esbarra em você, guia seus olhos, suas emoções.

Você esbarra nas telas, nas pinturas nas paredes, nos pincéis, nos tubos de tinta. Ah, não é bom falar em tubos de tinta: você se lembra dos versos de Portinari no fim de um pequeno texto em prosa:

“A morte será colorida?
De que cor será a outra vida?”

Você se lembra, com dor, que o artista morreu de amor à sua arte. De obsessão pela sua arte. Já prevenido de que não deveria abusar das tintas, depois de sofrer grave intoxicação, não parou de pintar. Tinha uma encomenda de vários quadros, tinha a obsessão da criação, precisava criar, custasse o que custasse, até a própria vida. A arte matou-o.

A casa está lá. Logo na entrada a sua pintura de “São Jorge e o dragão”, acima de uma porta, e o poema explicando-a. Explicação ingênua, com a cor e o espanto da infância. Depois, um quarto com seu livro, seus poemas nas paredes, coloridos, com a cor e o espanto da infância.

Os seus versos são capengas. Era um extraordinário pintor, não um poeta. Lembro-me, quase malvadamente, de um conto de Agustina Bessa Luís. Basta o título: “Apenas um poeta manco”. Candinho era o poeta das tintas. Com as tintas não mancava. Era o poeta da cor, das formas leves, que pairavam no ar. Pintava o sonho. Com que graça pintava o sonho!

Construiu no quintal a “Capela da Nonna”. Pequenina, para caber apenas a sua nonna. O Coração de Jesus e o Coração de Maria à frente. Dos lados, o anjo Gabriel e Santo Antônio, São Francisco, São Sebastião. Leves. Candinho conhecia a religião da leveza. As cores claras, as formas nítidas, leves. Candinho pintava a paz.

Na Igreja Matriz de Batatais, ali perto da sua Brodósqui, Candinho pintou seis belos murais. Deixou o Deus cruel para os renascentistas, que tinham o fogo do inferno na garganta e serpentes peçonhentas nos olhos. Candinho pintou figuras leves. Inventou a religião da leveza. A religião no tempo dele ainda era pesadona. Não a dele. As figuras pairavam no ar, como se estivessem em êxtase. A “Fuga para o Egito” ou “Jesus carregando a cruz”. José e Maria deveriam estar cansados, abatidos, apavorados. Cristo deveria estar sofrendo uma dor imensa. Quando Candinho pinta, estão mais leves do que se estivessem em êxtase.

Não que Portinari não pintasse a dor. Diante da tela “Os retirantes”, no Masp, quase sentia os ossos daquelas figuras doídas estralando, quase sentia respingar sangue por cima de mim. Mas as figuras religiosas Candinho pintou com leveza. Candinho é o menino dos sonhos leves da sua infância. Como se um anjo o carregasse nos braços, como se um anjo guiasse suas mãos para pintar o sonho. Leve, aéreo, celeste. Celestial.

Mas eu não quis falar de uma sala da casa de Portinari. O seu estúdio. É o lugar mais triste da casa. Vejo Candinho que se afasta, com o pincel em punho. Apóia-se numa perna, ergue o pincel, e mede a tela. Mede uma figura invisível na tela. Candinho é uma figura invisível no estúdio vazio. Candinho faz uma falta danada no estúdio vazio.

O estúdio é o lugar mais triste da casa. Candinho não está lá. Falei que a casa conserva a alma de Portinari. Mas o estúdio está frio demais. Sem cor. Há cor em todos os cômodos da casa. Menos no estúdio. Lembro, com dor no peito, os versos de Portinari:

“A morte será colorida?
De que cor será a outra vida?”

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Aliança Eterna

Vejo o sangue correndo sobre a pedra,
vejo o sangue inundando a terra inteira.
O sangue escorre dentro do universo,
lava os ossos de todos os homens mortos.

Limpa todos os ossos do caminho,
vai até os ossos do primeiro Adão.
É o sangue do novo Adão, o Cristo.
A aliança eterna foi autenticada.

Jesus, o ungido da mansão do Pai,
veio ungir o homem no óleo do seu sangue.
Deus é fiel à aliança com Abraão.

Se a fraqueza do homem quebra a aliança,
Cristo lança a âncora com a sua cruz
e ergue a aliança eterna, sempre nova.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Epitáfio

Tinha uma pedra no meio do caminho.
Agora estou debaixo dela.

As águas do eterno

As águas correm, correm para sempre.
Sou só, sou a paisagem verde e Deus.
Uma garça branca pousa na margem do rio.
O sol pousa no horizonte vermelho.
Por que contemplar? Por que a luz, o êxtase?
Além do horizonte ergue-se um novo horizonte.

A árvore se transfigura, como Cristo.
A árvore sofre, agoniza, como Cristo.
Os frutos pendem da árvore, como pássaros maduros.
Colho os frutos e canto e conheço.
Como o sol, as águas correm para sempre.

A terra seca, o deserto onde não medra a semente.
Não edifico a minha casa nessa terra.
Este é o campo da penumbra.
Este é o campo da penúria, do silêncio seco de Deus.
Preciso de água para a minha argila.
Preciso de argila para o meu cântaro.
Preciso do cântaro para a minha face.
Modelo a minha face à imagem da face de Deus.
As águas correm para sempre.
Onde as águas que correm para sempre?

As vigas da minha casa estão podres.
Onde a palavra nova que sustente a minha casa?
Ouça o vento, que enferruja o arado.
Ouça o lamento dos sulcos, que esperam a semente.
Ouça a semente amarga florindo no meu túmulo.
As águas fluem, os horizontes fluem.
O pássaro e o trigo fluem, com a terra amarga.
No princípio era o verbo, eram os alvos lençóis.
No princípio eram as águas.
No princípio eram as garças brancas sobre as águas.
E as águas correm para sempre.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O TÚMULO Nº 1

João Pincke sobe a colina do Cemitério da Saudade com as costas curvadas. Os pedreiros e carpinteiros ainda estão construindo o cemitério: os muros altos, os dois portões, as ruas onde se alinharão os túmulos, um oratório com uma torre encimada por uma cruz de bronze, onde se rezará a missa de inauguração e onde se abrirá a primeira sepultura.

João Pincke conversa com os carpinteiros e pedreiros, pergunta, insiste, e eles respondem que não, fazem muitos gestos negativos com a cabeça. Respondem às perguntas do outro, gentilmente, como se não tivessem nada mais a fazer no mundo.

A mulher no sopé do morro, invisível quase, na distância, toda tarde vê com pouco caso o marido subindo a encosta, e resmunga: Oras! O homem sumia-se na entrada do cemitério, com a sua corcunda de maldades, e tanto fazia que voltasse ou não voltasse. O homem sumia-se, com a sua esquisitice, e logo estaria de volta para continuar com a esquisitice de todo dia.

João Pincke dava as costas à cidade, que crescia ao léu, e subia a encosta de alma leve: levava cada vez menos peso, logo estaria livre. A mulher olhava-o, burro de carga empacando na subida, e dava de ombros: Mais dia, menos dia, empaca de vez. E os dias passavam-se, um depois do outro, o homem subindo a estrada de areia branca, cada vez mais pesada, embora de alma leve, e a mulher respondendo-lhe com um muxoxo: Oras!

João Pincke doara o terreno para ser construído o cemitério da cidade e, como bom zelador de sua doação, todos os dias ia verificar as obras, e perguntava se estava pronto. Era o que se pensava.

Na centésima ou centésima primeira subida, tinham sido uns cem dias, os pedreiros atrapalhando-se ainda com a massa e com as pás e as enxadas e os tijolos, os malditos tijolos, esfregaram as mãos, satisfeitos: Está pronto o cemitério.

Foi como a sentença final do juiz, a condenação: Enforque-se. Estava lavrada a sentença, não havia escapatória. João Pincke, no alto do morro, olha a cidade pela última vez. Estava imerso em sua solidão. Um homem e o universo. Um homem e o seu destino.

A corda no pescoço, o peso do corpo, o vácuo, a dor, uma dor enorme, sufocando, como se o peito fosse arrebentar; depois, a ausência da dor; e, enfim, mais nada.

A imagem do homem enforcado à luz da lua, no portal do cemitério. O olho aberto refletindo a primeira estrela; o outro, vazado, escorrendo pela face dura. Mostrando a língua para a cidade que o recebera e iria repeli-lo, como a um filho indigno.

Olha a cidade com um olho só, e não se poderia saber se era esse olho que chorava, ou o outro.

Sempre alguém chora por nós; nunca se sabe. À direita de quem entra pelo portão principal do Cemitério da Saudade, o mais antigo da nossa cidade, a doze passos bem medidos, entre a primeira e a segunda ruas de túmulos, está uma pequena construção muito antiga, um oratório encimado por uma cruz de bronze. Na soleira, em letras mal legíveis, está escrito: “João Pincke – 26/06/1908 – Saudades de sua esposa”.

Um homem sempre merece, pelo menos, as lágrimas da morte. Talvez a mulher tenha sentido um alívio com a morte do marido; talvez tenha chorado lágrimas verdadeiras; talvez um sentimento de pesar, de uma mágoa sem remédio a tenha levado a mandar escrever aquelas palavras: “Saudades de sua esposa”.

domingo, 9 de setembro de 2007

O pranto de Ulisses

Ulisses na ilha chorando seus companheiros mortos
espalhados pela praia como flores murchas ao sol.

Ulisses se inclina e geme de dor.
Tem sangue na face e tem sangue nas mãos.

O pranto não se interrompe. Nem quando recolhe os mortos
e os amontoa numa pira: o fogo purifica, a dor continua.

Uma rosa bóia, entre as pedras, num lago de sangue;
Ulisses leva aos lábios e beija,

no sangue da rosa, a dor dos companheiros mortos.

O deserto de Deus

Eu não vejo Deus na areia do deserto.
Eu não vejo Deus na noite escura da minha alma.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O menino a cavalo

O poema é de Alberto da Costa e Silva, um dos maiores poetas brasileiros, embora ninguém saiba disso, nem ele próprio faz questão de que alguém saiba. Mas eu não pretendo falar do poeta, nem analisar o seu poema. O meu objetivo é mais ao rés do chão, a matéria da crônica é como a tiririca, se esparrama por onde quer. Eu quero só bulir com a memória, bulindo com as imagens do poema. Ah, memória, louca da casa, velha desmiolada, que por mor dos pesares não bate bem, nem poderia bater para fazer jus ao seu título, à sua coroa sem cabeça a coroar.

Leio que García Márquez viveu oito anos em Aracataca, e foi o bastante para criar Macondo e uma leva enorme de personagens. Eu vivi os mesmos oito anos num pedaço de terra chamado Matão e não tenho história nenhuma para contar. Tenho para mim que Garcia Márquez ouviu muitas histórias, da mãe e de outros parentes, deixou que a louca da casa espanasse e empoeirasse causos e gentes e, sem que ele desse por isso, se fizeram na cabeça dele as histórias que contou como se fossem dele, memórias dele.

Eu tenho cabeça fraca, de modo algum tenho língua de contador, talvez me sobrem umas visagens, apenas, e com tais visagens, reais ou inventadas pela minha louca endiabrada, posso criar umas quantas imagens, com elas uns quantos poemas. Às vezes as imagens são tão reais que me dizem: Como você se lembra! Não me lembro, não. Invento a verdade. A emoção é verdadeira, só a memória é inventada. Tanto que ninguém acha que é mentira. A invenção nunca é mentira.

Mas o poema “O menino a cavalo” começa com a beleza de uma lua na porta, como as muitas luas da minha infância, entre os galhos das árvores, entre os coqueiros no pasto. Embora fale da lua do selim.

As mãos grudadas no arreio vêm bem a propósito. Embora o homem fale em seguida das rédeas, meio canhestramente: se as mãos estavam grudadas no arreio, como estariam sofreando com as rédeas o monjolo do tempo? O caso é que não é o homem, mas o poeta quem fala das rédeas, ou não falaria dessa beleza de monjolo e tempo.

Monjolo eu não conheci, não me lembro de nenhum, mas a desmiolada que vive na minha cachola inventou dezenas e centenas de monjolos, posso sentir a roda-d’água me lavando o corpo e a alma, e o pilão pilando, não o milho do fubá, mas o milho do tempo.

Pasto e barro não preciso inventar, me lembro de tanto pasto verde, de tanta terra vermelha, que emerjo sem perceber numas madrugadas orvalhadas, puro como o chilreio da passarada, virginal como o primeiro homem da criação.

Sinto-me curvado com o poeta pelo peso das coisas. Esse é já um ato de homem, de dor, de acabrunhamento. Podem ser boas as coisas do passado, mas quando renascem sobre os ombros do homem maduro, ele já não tem forças para carregá-las.

Não importa que diga que nada mudou. Como mudou! É a mesma a paisagem? O gado e o cacto são do mesmo menino? Nem o menino é já o mesmo! O poeta guarda a folhagem do passado enterrada em si, e chora. Por que chora? Porque enterrada, e, portanto, morta. Não tem por que dizer que não se achou depois. Foi a sua ausência que saltou no estribo e partiu para jamais.

A ausência é um troço incorpóreo, mas montou a cavalo e cavalga, infelizmente para fora do cenário. Diz que o potro pisa a marca dos seus passos, até o cavalo rejuvenesceu, é potro, mas pisa a marca de que passos? Já não afirmou que é a ausência que cavalga? É o nada que cavalga.

As águas fluíam, ainda estão fluindo. Levam a infância nelas, para muito longe, para bem perto do meu coração. O longe é sempre perto do coração.

A vida é um desenho breve, uma paisagem de nada, suspensa sobre o abismo. O poeta fala de um abacate sem semente, o bojo onde vivemos, de onde vislumbramos o céu, prenúncio do escuro da morte. O céu das nossas pálpebras. Como no céu das nossas pálpebras o escuro da morte? No entanto, a imagem é boa.

Daí, a orfandade de estar vivo. Certo, sempre perdemos alguém. Estou vivo enquanto alguém não está. Sempre algo finda na nossa viagem pela vida. Sempre as nossas palavras se transformam em silêncio.

O poeta diz bem: a rotina de estar morto! Contemplar a própria morte nas rugas, na barba, nas unhas que crescem. Mesmo depois de morto, ainda crescem.

O pai do poeta desenha o menino a cavalo e acena-lhe. É um adeus doído, abissal. É o pai quem parte enquanto desenha e acena ao menino a cavalo.

Vivemos de adeuses. Não é que eu goste de falar da morte. Esconjuro a morte quando falo dela. As palavras não fazem se materializar a coisa. As palavras repetem que a coisa são só palavras. Não tem existência, é nada, a morte. Palavras, palavras.

O poeta está junto ao pai, morto. O poeta-menino. Só volta nesse embalo das palavras. O poeta e o pai revivem nas imagens que as palavras criam. As palavras, que são nada.

Muitas vezes, sempre, ouço a voz do meu pai. É uma voz forte, pausada, cheia. O meu pai não sabia desenhar, ele falava. A sua voz criava o mundo. Ele não sabia que era um poeta: criava com as palavras. Como Deus, o primeiro poeta.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

A mesa dos mortos

Os mortos acordam, sentam-se à mesa comigo.
Têm pedras nas mãos e pássaros sobre os ombros.
É perigoso que as pedras matem os pássaros.
As palavras são pesadas como pedras.
Às vezes é preciso que as palavras matem os pássaros.

A minha mãe e o meu pai contam histórias.
Têm terra na boca e contam histórias.
As suas palavras são como a água no meio do mato.
Nas suas palavras, a alma de todos os que vieram antes.

O meu avô corta lenha com um machado negro.
O machado do meu avô corta a lenha da memória.
Se é verde, fica a secar ao sol.
É preciso apagar a memória das árvores.
Tanta água represada.

Deus preside a conferência dos mortos.
Deus guia a minha mão.
Não escreve por mim: muitas vezes apaga o que escrevo.
Deus me ensina: as palavras morrem.
As palavras precisam apagar o que existe.
É preciso deixar lugar para o eterno.

O aedo cego

Não tinha olhos.
Dois buracos no lugar,
por onde serpentes espiavam.